Anos atrás, um artigo de Geneton Moraes Neto desnudou a crise do jornalismo. Dizia ele, de forma extremamente lúcida, que o próprio jornalista está matando a profissão ao insistir em velhas práticas analógicas em plena era digital, como a sandice de estampar manchetes nas primeiras páginas com acontecimentos mais do que debatidos no dia anterior. Já no ano passado, Steven Spielberg e George Lucas, dois dos maiores gênios da sétima arte, assustavam jovens estudantes de cinema da University of Southern California ao anunciarem a “implosão de Hollywood”. Cada um do seu jeito, George, Steven e Geneton deram o mesmo recado: a mídia está em crise e precisa se reinventar correndo. É preciso entender as novas regras do negócio e criar estratégias eficazes de sobrevivência.
Mais do que isso: é preciso deixar de lado os ideais românticos das profissões e começar a enxergar conglomerados de comunicação e de mídia como o que realmente são: empresas donas de produtos em busca de lucro.
Enquanto o cinema já começa a reagir diante de seus grandes fantasmas, travestidos de novas plataformas digitais de distribuição de conteúdo, a crise do jornalismo piora a cada dia. No Brasil, demissões em massa em jornais como “O Globo” – que dispensou 30 profissionais em dezembro do ano passado – e todo um mercado às cegas, tateando em busca de respostas para perguntas como “para onde iremos?”; “em que iremos atuar?”; “qual é nosso papel nesse latifúndio?”. Dúvidas existenciais assolam a profissão, que simplesmente não se conhece mais. Passou tantos anos se firmando e reafirmando como A fornecedora oficial de informações ao público, que quando se deu conta de que não o é, não sabe mais para que serve – se para o entretenimento ou para o jornalismo. Em meio à despersonalização, mistura-se tudo e o profissional passa a atirar para todos os lados. O público acaba ficando ainda mais confuso e se volta para outras (muitas) fontes.
O momento inspira cuidados especiais. A profissão tal como era respira com a ajuda dos aparelhos e o remédio pode ser amargo – a cura demanda uma total reinvenção não só do que se faz mas do que se espera da profissão. Estamos cansados de saber que a internet transformou a forma como se consome as informações, mas não o interesse que se tem nestas. O formato da leitura e o acesso mudaram, mas o ser humano continua o mesmo – curioso, interessado na vida alheia e sedento por informações. Infelizmente, o jornalista tem se dedicado à forma e muito pouco ao conteúdo. E é aí que ele mata a profissão e se coloca na posição de coadjuvante na construção das narrativas que constroem a sociedade. Pior: um coadjuvante que se torna mais e mais irrelevante.
Fazer bem feito
Ao tentar se adaptar aos ciclos, processos e linguagens da internet, ao correr atrás de memes sem compreender os mecanismos que os criam, o escriba vulgariza seu material e o iguala em (falta de) qualidade a qualquer outro meio noticioso. E a competição é e sempre será injusta: o amador é mais rápido que o profissional, pelo menos no que diz respeito à criação de memes e virais. Como não sofre com a pressão da responsabilidade, o não-profissional é mais livre para expressar/passar adiante o que vê e o que interpreta dos acontecimentos. E, assim, acaba marcando muito mais gols. É angustiante assistir à imprensa se rendendo ao vulgar, como se não houvesse outra forma de chamar a atenção do público.
Considerar que só o barato e chulo interessam é desconhecer a natureza humana – ou simplesmente acreditar que o “mundo virtual” congrega outras espécies que não as mesmas daqui “de fora”. Faz parte do ser humano o interesse pela vulgaridade, e mesmo quem jura não dar valor às tolices não está imune ao trivial descartável. Este, com seu charme brejeiro e transgressor, sempre vai conseguir um naco de nossa atenção, nem que seja inconscientemente. É tão natural que os cliques chegam a ser automáticos. O carro de Caetano está estacionado no Leblon? Clique! O famoso entrou na casa de sucos e saiu carregando um copo? Clique! A popozuda deu opinião sobre algo absolutamente irrelevante? Clique! O mercado de notícias de celebridades, sejam elas de primeiro ou quinto escalões, conhece seu público, sabe o que o move. Misturar este mercado com o da informação relevante, no entanto, é das mais graves miopias da história da comunicação. Banalidades são um nicho, mas não são o todo; e quando o profissional se dedica apenas a parte de seu trabalho, deixa de fazer o resto, jogando todo um mercado no lixo e eliminando oportunidades que podiam beneficiar a ele mesmo.
O sucesso de programas de gosto duvidoso faz sentido, sim; imagens com cenas fortes são compartilhadas mais vezes; a tragédia seduz pela surpresa; o bizarro, pelo inusitado. Não há quem passe incólume a uma chamada sensacionalista. Isso não significa, no entanto, que todo um segmento profissional deva se curvar ao ignóbil. E se o faz, é por ignorância, pura e simples. O digital confunde o jornalista; ele ainda não sabe usar as ferramentas digitais; lida com a internet com a mesma empáfia com a qual lidava com o papel – acha que é a fonte primária e secundária de informações para o público, seu pastor, tradutor da realidade, enviado pelos céus para tirar o cego da escuridão. E não é. E não é há muito tempo.
O jornalismo precisa aprender com o mercado do entretenimento. Meio à crise do cinema, as séries de TV crescem e aparecem e os grandes estúdios correm atrás do prejuízo, tentando imitar (e não matar) concorrentes oriundos da era digital, como a poderosa Netflix. E foi nessa toada que Spielberg admitiu que, fosse hoje, seu “Lincoln” seria esquartejado e oferecido ao público aos poucos, em capítulos. No momento em que “Game of Thrones” transforma a HBO, marca da Time Warner, em caso de sucesso e alvo da gana dos estúdios – a 21st Century Fox,de Rupert Murdoch, chegou a fazer uma oferta hostil de aquisição – e a criadora de “Breaking Bad”, “Mad Men”e “The walking dead”, a AMC Networks, sai comprando empresas como a BBC America, vê-se que muita coisa mudou. Mas que ainda há oportunidades para quem sabe fazer bem feito.
Vez cativa
Entenda-se: não se fala em produzir pior e em maior quantidade; e sim em criar produtos premium que possam competir de igual para igual pelo interesse dos clientes. A Netflix lança “House of cards” em formato diferenciado e contando com pesos-pesados da indústria cinematográfica? Corre-se atrás de boas histórias fatiadas e oferecidas aos pedaços. O público não está mudando de gosto; ele só assiste a produtos de qualidade de forma diferente – interage mais, se envolve com as narrativas, trazendo-as para a sua vida e, assim, acaba gastando mais. Pela lógica do capitalismo, o sucesso é total e todo mundo sai ganhando – o público, que passa a contar com mais obras de arte para seu deleite e passatempo; os profissionais, que veem surgir novas oportunidades de trabalho; e as empresas, que lucram mais abrindo novas clareiras até então inexploradas. Há mais de uma década, Chris Anderson já tinha nomeado a possibilidade de se alcançar lucro apostando em nichos de mercado – a tal Cauda Longa.
A mesma coisa podia se dar com o jornalismo – se bem produzida, a reportagem terá vez cativa na preferência do leitor/espectador; assim como, em seu nicho, o jornalismo de perfumaria conquista os curiosos incautos. Enquanto o jornalista acreditar que o digital significa qualidade inferior, ele estará sujeito à competição injusta do amadorismo. Que sabe fazer o pior muito melhor que seu bem formado rival.
******
Elis Monteiro é jornalista especializada em tecnologia e novas mídias, palestrante, consultora, professora de Marketing Digital da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Veiga de Almeida (UVA).