Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O papel do jornal

“Um retrospecto da história do jornal, desde o seu surgimento em 1605, revela que ele resistiu, assim como o livro, a todos os embates da tecnologia e das mudanças sociais. O obscurantismo político, a revolução industrial, as invenções para vencer as distâncias, as guerras, as migrações, a recessão econômica, a TV, tudo, enfim, foi absorvido pelo veículo mais institucionalizado de todos, o jornal diário.”

Li isso, de Alberto Dines, em seu livro O Papel do Jornal, em 1974 [a 9ª edição é de 2009], quando eu era editor-chefe da Rede Globo Nordeste (Recife) e fazia jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco. Será que ele mantém a mesma crença? Talvez sim, talvez não. O intelectual, vocação vitoriosa de jornalista e vocação perdida de cineasta, é o mesmo de há 40 anos, mas as circunstâncias são outras. Afinal, está em curso a maior crise dos jornais no mundo em mais de 400 anos de história.

Quando Alberto Dines escreveu esse livro, os jornais no Brasil atravessavam profunda crise. Não era a crise dos jornais de papel que a internet trouxe ao mundo de hoje, mas a crise de papel dos jornais. Embora a internet já engatinhasse nos Estados Unidos, não se falava nela ainda. Da pauta jornalística brasileira constavam, então, duas graves crises: a falta de papel de imprensa e a falta de liberdade de imprensa. Semelhantemente ao que ocorre nos dias atuais na Venezuela do socialista Nicolás Maduro. No Brasil, da primeira podia-se falar à vontade; da segunda, nem pensar. Seria agressão à ditadura militar com punições arbitrárias pesadas.

Criativa e inteligentemente, o professor de jornalismo comparado resolveu explorar o primeiro tema para dar carona ao segundo, que era o que realmente importava. É o que se deduz. Assim, dedicou quase todo o livro ao mercado do papel de imprensa: produção do papel, consumo do papel, importação do papel, preço do papel. Era um problema sério. Muitos jornais tiveram que encolher suas edições para manter a circulação. Dono de jornal lia o seu no café da manhã sem saber se ia ter papel para rodar a edição do dia seguinte.

Ex-diretor de redação do Jornal do Brasil, Alberto Dines mergulhou no assunto. Aproveitou a crise do papel de imprensa e deu visibilidade aos fundamentos sobre o papel dos jornais, suas dimensões temporais, seu engajamento social, seu compromisso ético, sua responsabilidade, sua renovação e sua importância na vida nacional. E acabou dando o seu recado contra o governo e contra a censura com uma analogia etológica:

“A comunicação pode unir um país dividido. A censura – porque não pode ser disfarçada – aumenta rancores e cisões. O zum-zum certamente tem seus inconvenientes, mas sem ele é muito pior: a colmeia se desorienta, perde seu sentido e seus valores, quebra-se a sua estrutura. Sem a comunicação livre e espontânea, a colmeia será uma construção abandonada e oca.”

Papel espiritual

Deu volta nos censores militares. Já tinha feito isso quando diretor-editor do Jornal do Brasil. Em 11 de setembro 1973, a censura militar do Brasil proibiu os jornais de darem em manchete o assassinato do presidente do Chile, Salvador Allende. Mesmo contrariado, Alberto Dines não se intimidou e reagiu brilhantemente: tirou a manchete já pronta e deixou lá no alto da primeira página a notícia impressa em tipos quase de letras garrafais. Sem manchete, mas como se todo o texto fosse manchete. Foi um sucesso retumbante. Custou-lhe o emprego, mas ele entrou para a antologia do jornalismo brasileiro.

Agora, diante dessa crise mundial dos jornais de papel, acelerada e agravada pela onipresente e poderosa internet, vale um ensinamento precioso de Alberto Dines: “Uma Nação de grandes jornais é uma grande Nação.” Caso típico do Japão de hoje que ostenta os maiores jornais do mundo e é uma das maiores potências do planeta. Sem dúvidas, se os Estados Unidos abolirem seus jornais impressos, como já estão prevendo, jamais serão a mesma potência. Sem a força, o prestígio e a influência de The Wall Street Journal, The New York Times, The Washington Post, USA Today e Los Angeles Times, jamais serão respeitados como o são hoje em todo o mundo.

Rádio, televisão e internet não têm capacidade, profundidade e credibilidade para substituir o papel do jornal: debater ideias, promover ideais, combater opressores, defender oprimidos, lutar pela liberdade, preservar tradições, refletir o passado, analisar o presente, antecipar o futuro e contribuir para o aprimoramento cultural e até para a hegemonia do seu povo. Além de “vista da Nação”, como dizia Rui Barbosa, os grandes jornais são a alma de uma Nação. Uma Nação sem grandes jornais é uma Nação de alma penada. Por isso, o papel do jornal é um papel nobremente espiritual.

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Jota Alcides é jornalista e escritor