Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alma à venda?

Há todo tipo de nome para o formato. Alguns mais diretos, como “conteúdo patrocinado”, outros mais obscuros, como “publicidade nativa”, ou até mais “gourmet”, como “branded journalism” (algo como “jornalismo de marcas”, traduzindo livremente).

Batize a criança como quiser. O ponto é que essa onda ganhou tamanho de um ano para cá, quando o New York Times passou a aceitar que empresas pagassem pela publicação online de determinadas pautas que, como gostam de dizer seus departamentos de marketing, “agregam valor” às suas marcas. Entre os anunciantes, estão Dell, Netflix, Shell, Google e United Airlines.

Não se trata do elogio puro e direto do produto, como “veja por que os produtos da Dell são os melhores”. A reportagem feita para a Dell tratava de carreiras em empresas de tecnologia. A do Netflix, da rotina em presídios femininos – a empresa de vídeos pela internet estava lançando uma nova temporada da série Orange Is the New Black, ambientada em um deles. 

Em tese, é importante que o material tenha interesse jornalístico. Um bom teste de qualidade é submeter o conteúdo à seguinte pergunta: publicaríamos algo assim mesmo sem o patrocínio? O New York Times esteve perto de derrubar o sarrafo algumas vezes. O conteúdo patrocinado pela United, sobre a história da participação americana em Olimpíadas, certamente um tema relevante, apresenta um incômodo subtítulo muito mais publicitário do que jornalístico: “Há 30 anos, a United apoia os atletas americanos na sua jornada”. De maneira geral, porém, percebe-se certo esforço no sentido de manter a compostura – ou, diriam alguns, de “não vender a alma”. 

Impressiona também a transparência adotada pelo jornal ao colocar todo o conteúdo patrocinado sob um aviso que diz, sem rodeios, “paid post” (“notícia paga”, em tradução livre). A tradição na internet, onde os blogs já fazem isso há muito tempo, é usar eufemismos como “material publieditorial” ou “conteúdo apoiado por tal empresa”.

Os anunciantes parecem ter gostado do resultado, e logo outros jornais estrangeiros de peso perceberam a oportunidade de ampliar suas receitas por aí e adotaram a publicidade nativa. Os dois principais exemplos são o Wall Street Journal e o Guardian, que seguiram o New York Times. As reportagens são produzidas por jornalistas ligados aos veículos, observando os próprios padrões de qualidade editorial, mas foram montadas equipes separadas do resto da redação, dedicadas exclusivamente ao conteúdo pago.

No Brasil, os veículos flertam com tal modelo, mas de maneira um pouco cambaleante. O Estado de S. Paulo, por exemplo, aceita que empresas patrocinem conteúdo no seu site, mas o material publicado com frequência tem cara de release de relações públicas. Uma matéria paga pela Epson, por exemplo, tinha como título “Epson leva impressoras para lugares remotos e prova conveniência da Ecotank [uma linha de produtos da empresa]”.

Além disso, os veículos brasileiros há muito tempo publicam material com aspecto jornalístico em páginas e até cadernos especiais sob o aviso “informe publicitário”. Quase sempre, porém, o conteúdo não tem grande relevância jornalística; com
frequência os textos são mal escritos. As supostas reportagens destoam tanto do resto do jornal em tom, cuidado gráfico e padronização que o leitor fica involuntariamente protegido de qualquer risco de confusão. A pergunta, porém, é esta: e se esses textos passassem a ser produzidos por bons jornalistas, com experiência e talento em reportagem e edição, como propõem os defensores da publicidade nativa? Mais do que isso: quantos de nós, premidos antes de tudo pela necessidade de pagar as contas, deixaríamos de aceitar convites financeiramente vantajosos para produzir pautas de interesse corporativo?

Em desacordo

A discórdia precisa ser dividida em dois pontos. Número um: é aceitável que empresas utilizem técnicas jornalísticas – reportagens, em resumo – para fortalecer suas marcas? Número dois: devem os jornais, devidamente remunerados, aceitar o encargo de produzir e publicar tais conteúdos?

A resposta para a primeira pergunta parece mais fácil. A técnica jornalística não é nem deve ser propriedade de ninguém. Se há alguma esperança para o futuro dessa profissão, aliás, ela reside justamente no fato de acreditarmos que as ferramentas do jornalismo – apuração ampla; redação clara, equilibrada e saborosa; edição cuidadosa e voltada para o leitor – são úteis para a sociedade. Se uma grande corporação quiser contratar uma equipe de bons jornalistas para editar conteúdos que valorizem sua marca, o que há para questionar? Pode até soar estranho ouvir alguém dizer que é “repórter do Itaú” ou “editor da Ambev”, mas a existência de tais vagas em corporações abastadas não deixa de ser um alívio para os profissionais da nossa combalida área. Além disso, não é de hoje que grandes empresas e assessorias de comunicação contratam jornalistas experientes e talentosos, embora atualmente mais para funções de assessoria de imprensa do que de reportagem. A existência potencial de um mercado de “jornalismo empresarial”, por mais que tal expressão possa assustar ou ofender os colegas mais críticos ao mercado, em nada afeta a existência dos jornais como conhecemos e gostamos.

A segunda pergunta é mais complicada. A crítica mais comum é que, ao aceitar que corporações paguem por reportagens sobre temas do seu interesse, ainda que as redações se permitam recusar qualquer coisa que soe publicidade, estaríamos criando um estímulo à “overcobertura” de temas com interesse econômico. No outro extremo, os jornais seriam estimulados a deixar de lado assuntos que ninguém quer patrocinar, como sistema público de saúde, a vida dos miseráveis, violência policial na periferia, falcatruas no governo e tantos outros. Assim como há hoje as “doenças negligenciadas”, aquelas que não interessam à indústria farmacêutica porque não têm potencial de trazer lucro, surgiriam as “pautas negligenciadas”.

Tal argumento desconsidera, porém, que o novo bolo de receitas obtido com o jornalismo patrocinado serviria justamente para salvar tal cobertura de temas que ninguém quer patrocinar. É preciso levar em conta que o que se cobra de um patrocinador por uma reportagem sobre um tema que valoriza sua marca é muito mais do que o custo bruto de fazer aquele material específico. Há um “superávit”, digamos, que os veículos podem realocar para reforçar sua produção tradicional, inclusive com a contratação de mais jornalistas investigativos. A inocente pauta da Dell sobre carreiras em empresas de tecnologia, assim, poderia estar financiando manchetes sobre o mais novo caso de corrupção em determinado ministério ou estatal. 

Considerando-se que exista um núcleo de produção de conteúdo patrocinado separado do resto da redação, tal departamento, altamente superavitário, estaria na verdade financiando bom jornalismo político, econômico ou policial, por exemplo. E, como sabemos, bom jornalismo custa caro. Se os jornais morrerem por falta de dinheiro, ficaremos sem nenhuma pauta, patrocinada ou não. Muitos jornalistas, talvez em função de uma visão idealizada do mundo e da profissão, tentam ignorar que jornais são empresas. Se o modelo de negócio naufraga, acaba a brincadeira.

Senso comum

Outra crítica comum é que a existência de publicidade nativa minaria a credibilidade dos jornais, coisa que é, de fato, seu maior ativo. É batido dizer que confiança é algo que se demora para conquistar e que se perde rápido, mas a experiência mostra que, neste caso, o senso comum não está errado.

Não me parece, porém, que a mera existência de patrocinadores assustará os leitores. Ao contrário de muitos de nós, jornalistas, nada indica que eles apresentem essa ojeriza ao mundo empresarial, como se logomarcas contaminassem de maneira tóxica qualquer lugar onde forem colocadas. O que de fato pode causar perda de credibilidade é a impressão de que determinado jornal está fazendo promoção de determinada empresa por ela estar pagando. A experiência do New York Times, como mostrei, aponta ser possível fazer publicidade nativa sem que o tom seja de “pagou, levou”. Anda-se sempre na corda bamba, porém – a tentação de curto prazo é ser mais flexível com as pautas, bombando o faturamento do trimestre, enquanto o interesse de longo prazo, obviamente, é manter a confiança do leitor na isenção do jornal. 

Dessa maneira, a recomendação mais importante me parece ser esta: que qualquer veículo, antes de embarcar na publicidade nativa, ponha no papel seus mandamentos para o modelo. Eles devem, depois, ser tratados com devoção religiosa. Seria, basicamente, uma lista de “o que fazemos e o que não fazemos”. Um exemplo: aceitamos patrocínio para pautas selecionadas, sobre temas de relevância jornalística que, em função do interesse gerado, possam valorizar uma marca que venha a ser exposta junto a elas. (Os jornais já fazem isso há bastante tempo, por exemplo, com cadernos especiais temáticos.) Não vamos, porém, fazer publicidade nem relações públicas: não aceitaremos pautas que objetivem meramente divulgar produtos, destacar seus pontos positivos ou mostrar como são incríveis as ações sociais de uma empresa. Ninguém nega que as empresas gostariam – e gastam cada vez mais dinheiro em busca disso – de influenciar o noticiário a seu favor. Os jornais, porém, podem determinar as regras desse jogo. Ter transparência quanto a essa “doutrina” faz determinada publicação ganhar pontos tanto com o mercado publicitário quanto com os leitores.

O que não podemos é, em tempos de crise do financiamento do jornalismo, deixar de discutir novas fontes potenciais de receita.

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Ricardo Mioto é editor de ciência, saúde e equilíbrio do jornal Folha de S.Paulo