Quando comecei a trabalhar como jornalista profissional, em 1966, vários dos colegas de redação ainda escreviam à mão. Desde então, a imprensa avançou na direção de uma crise de transição, causada principalmente por inovações tecnológicas febris. A principal delas foi o surgimento da rede mundial de computadores e seus efeitos acompanhantes.
Muitos, como eu, ainda tateiam em busca de um espaço próprio e perene nessa realidade. Durante boa parte da minha vida profissional, que já se aproxima de meio século, tinha plena convicção de que minha forma de expressão seria sempre através do papel. Era nesse produto que escrevia e dele que obtinha quase todo manancial de matéria prima para o meu ofício de informar a opinião pública.
Ao longo dessa trajetória fui testemunha do aparecimento dos profetas do fim do papel e do seu artefato mais nobre, o livro. Felizmente as previsões catastróficas não se realizaram. Espero que elas continuem em suspenso até que eu não possa mais escrever ou ler. Para mim, o papel ainda é a forma mais eficiente de arquivar informações para uso e usufruto.
É por isso que há mais de 27 anos mantenho uma publicação em papel, o quinzenário Jornal Pessoal. Quando ele começou, em 1987, eu não tinha dúvida de que a imprensa escrita resistiria às novas alternativas de mídia. Hoje, a dúvida está definitivamente instalada, em escala mundial. Ainda assim, resisto. Meus mais intensos e melhores esforços são pela manutenção do JP.
Não tenho dúvida, no entanto, de que ele desafia a física financeira e o impacto tecnológico, que alterou completamente os costumes e hábitos humanos. Um deles é a própria maneira de comercializar periódicos. Um dos prazeres que tínhamos era chegar a um aeroporto, dentro e fora do país, e ir diretamente a uma livraria, com seu mostruário de livros, jornais e revistas. Os aeroportos se tornaram desertos de cultura. Já passei por alguns sem conseguir um único jornalzinho.
Herança de valor
E as bancas? Lembro-me de uma das primeiras de Belém, instalada pela Livraria Vitória na Avenida Presidente Vargas, em frente ao IEP (o Instituto de Educação do Pará, das nossas normalistas lindas, inclusive quando chamadas de piramutabas). Papai me dava um dinheirinho e eu voltava cheio de revistas, carimbadas com um selo em retângulo a alertar para a majoração do preço de capa por causa do transporte rodoviário, pela recém-inaugurada Belém-Brasília.
Já com essa rotina no currículo, tive diante de mim o paraíso quando visitei São Paulo pela primeira vez, em 1961. A primeira banca que vi foi no Largo do Paissandu, ao lado do hotel em que ficamos. A quantidade se multiplicava várias vezes e um detalhe despertou a minha atenção: desta vez eu pagava pelo preço registrado na capa, sem o acréscimo da imensa distância do Brasil em relação à Amazônia.
Todo esse passado influi sobre meu apreço pela publicação em papel. Mas há um fator novo: talvez o meu jornalzinho só tenha adquirido maior expressão por personificar (e simbolizar) a resistência e se oferecer como ponto de reflexão (e, talvez, inflexão) a essa tendência “internetiana” absolutista, invariavelmente maligna nessa busca do absoluto. Já percebemos seus exageros e riscos.
Basta lembrar, em outro plano, a amarga lição da Biblioteca Nacional de Paris. Ao se mudar para o novo e imponente edifício, descartou papel que, depois, ao se dar conta da significação desse despejo, tomou um choque. Aquela papelada tinha que continuar a ser guardada. A diretriz então mudou. Mas quanto foi perdido?
O leitor de hoje é comodista, com todo direito. Vai cada vez menos às bancas (já em processo de extinção) atrás das publicações que lhe interessam. Espera que elas cheguem ao seu domicílio. Ou se transfere de armas e bagagem para o mundo virtual. Lê cada vez menos textos em papel. Lê cada vez menos, aliás.
Por que insistir na contramão? Para dar a oportunidade de uma alternativa. Para moderar a sofreguidão da renúncia ao passado e adesão incondicional ao futuro, com pés inseguros no presente. Lançar uma ponte entre esses dois momentos, quem sabe, para assegurar que a riquíssima herança da cultura humana (ocidental e oriental) tenha continuidade, não seja dilapidada, não se desfaça como castelo de areia na praia, ou, como disse Marx, se desfazendo no ar justamente por ser sólida.
Imprensa crítica
Todo esse introito (que, quando comecei, era um “nariz de cera”) é para alertar meu caro leitor para a crise em que mergulha o Jornal Pessoal. Sua vendagem caiu abaixo do limite da – como se diz – sustentabilidade. Mais um pouco e se tornará inviável pelo mais elementar cálculo econômico, a aritmética de quitanda. Condição que se deve a essa tendência universal da mídia e, segundo alguns, ao surgimento deste blog, que desviou ainda mais o leitor da publicação em papel.
Para complicar a situação, a contribuição pública para a manutenção deste espaço também emagreceu a ponto de ter o perfil de uma modelo retilínea. Apenas meia dúzia de abnegados mantêm a emocionante sustentação do blog. Mas são poucos demais, embora de valor inestimável, enquanto símbolo.
Faço a comunicação em tom de alerta para que os defensores de uma imprensa crítica, democrática e alternativa reflitam sobre o papel que lhes cabe nessa romaria. Carregando o andor, talvez, com o cuidado necessário e a dedicação requerida.
******
Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)