Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A recessão por um fio

O fantasma da recessão em 2014 foi exorcizado e sumiu, graças à mudança de cálculo do IBGE. A economia brasileira cresceu 0,1% no ano passado, segundo o novo critério, ajustado ao padrão internacional. Foi quase nada, mas o resultado ficou acima de zero. Nem assim a imprensa ficou sossegada. “PIB cresce 0,1%, e país adia recessão para 2015”, segundo a manchete do Globo no sábado (28/3). A mesma profecia apareceu em outros grandes jornais. O Brasil escapou do número negativo no ano passado, mas os números conhecidos até agora já indicam um primeiro trimestre no vermelho.

Houve pouca variação no material publicado por esses jornais, no dia seguinte à divulgação das contas nacionais de 2014. A média anual de crescimento econômico nos últimos quatro anos, 2,1%, foi a mais baixa desde o governo Collor. Além disso, o produto por habitante foi 0,7% menor que em 2013. Além de enfrentar a estagnação econômica, o brasileiro médio ficou mais pobre.

Todos deram esses detalhes. Houve também comparações com o desempenho de outros países do Grupo dos 20 (G-20), formado pelas maiores economias do mundo. Mas ninguém se lembrou de incluir na edição de sábado (28) a comparação, especialmente significativa, com outras economias sul-americanas.

Entre 2011 e 2014, Bolívia, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru cresceram a taxas anuais médias superiores a 4%. Os mais dinâmicos desse grupo cresceram mais de 5% ao ano. Se o desempenho do Brasil, como disseram tantas vezes a presidente Dilma Rousseff e seus ministros, foi determinado pelas condições internacionais, como explicar os números desses países, também exportadores de commodities?

Crescimento prejudicado

Todos os jornais mencionaram também a queda do investimento no ano passado. O consumo, segundo assinalaram, foi insuficiente para compensar aquela queda. Muito bem, a redução do investimento contribuiu para puxar para baixo a economia. Mas pouco ou nada se explorou a consequência de maior alcance: investimento menor significa menor potencial de crescimento nos períodos seguintes.

Em 2013, segundo o IBGE, o governo e o setor privado investiram o equivalente a 20,5% do PIB em máquinas, equipamentos e construções, incluídas neste grupo as obras de infraestrutura. Em 2014 essa taxa caiu para 19,7%. Nos dois anos, como vem ocorrendo há muito tempo, o total investido ficou bem abaixo do padrão observado nas economias latino-americanas mais dinâmicas – 25% ou mais.

Há anos, além disso, o governo vem reafirmando a intenção de levar essa proporção a 24% do PIB. Especialistas citados pelo Estado de S. Paulo preveem uma nova queda neste ano. Se isso se confirmar, o potencial de crescimento será mais uma vez afetado. Os jornais deram pouca ou nenhuma atenção a esse detalhe.

Autorizado ou obrigado?

Não há como negar. Pode ser muito chata a leitura de leis, projetos, medidas provisórias e decretos. Mas editores e repórteres deveriam, de vez em quando, aceitar essa chateação. Isso evitaria a publicação de matérias erradas ou muito incompletas. Mais que isso, reduziria o risco de transmitir, sem saber, recados de interesse de políticos. Faltou leitura, mais uma vez, quando os jornais noticiaram na quarta-feira (25/3) as pressões para o governo da União renegociar as dívidas de Estados e municípios com o Tesouro.

A maioria dos grandes jornais apresentou o assunto como se a Câmara dos Deputados e o PMDB houvessem acuado a presidente, forçando-a iniciar a revisão dos acordos. Segundo uma das manchetes, a Câmara havia derrotado a presidente e aprovado a redução dos débitos. Mas havia uma diferença razoável entre o noticiário e os fatos. Os deputados haviam realmente aprovado um prazo de 30 dias para a regulamentação de uma lei aprovada em novembro do ano passado. Um dos jornais mencionou essa lei, na primeira página, como se esta obrigasse a União a reduzir as dívidas. Também esse detalhe estava errado.

Fato: a lei aprovada em novembro simplesmente autorizou o governo a renegociar os débitos de Estados e municípios assumidos a partir do fim dos anos 1990, quando o Tesouro se tornou responsável pelos papagaios emitidos por administrações estaduais e municipais. O verbo “autorizar” foi usado várias vezes no texto. Não é preciso recorrer a dicionários para descobrir a enorme distância entre ser autorizado e ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa.

O governo federal provavelmente renegociaria as dívidas, até para aliviar a situação de alguns aliados importantes, como os prefeitos de São Paulo e do Rio. Mas teria de contornar outro probleminha político. A mudança dos encargos financeiros poderia ter efeito retroativo até a data de assinatura dos acordos. Em alguns casos, isso praticamente eliminaria a dívida. Do ponto de vista dos interesses e possibilidades do Tesouro Nacional, o razoável seria mudar o cálculo dos encargos a partir da renegociação. A propósito, o possível efeito retroativo da revisão das dívidas também foi omitido na maior parte das matérias.

O esperneio de prefeitos, governadores e congressistas foi motivado, antes de mais nada, pelo atraso da regulamentação da lei – um detalhe facilmente compreensível, quando o governo está voltado para uma prioridade muito diferente, a arrumação das contas públicas. De toda forma, é preciso lembrar, a regulamentação seria de uma lei meramente autorizativa. Os políticos tenderiam, naturalmente, a esquecer esse detalhe. Foi o caso do prefeito do Rio, Eduardo Paes, quando recorreu à Justiça Federal pedindo a aplicação imediata da lei e conseguindo uma liminar. Mas editores e repórteres um tantinho mais atentos deveriam lembrá-lo.

A exceção, nessa cobertura, foi o material do Valor. “Juristas acreditam”, informou a reportagem, “que a União poderá derrubar a liminar do Rio porque a lei apenas autoriza, mas não obriga a mudar os termos dos contratos.” Além disso, há o “entendimento jurídico de que uma lei não pode interferir em um contrato firmado entre duas partes”.

Dizer como será o final do jogo é outro problema. No fim da semana um grupo de juízes federais, no Rio, manteve a liminar concedida ao prefeito Eduardo Paes. Eles conheciam, supostamente, o texto da lei – ou pelo menos foram lembrados da diferença entre autorizar e obrigar pela Advocacia Geral da União. A pauta, a partir daí, ficaria mais pesada. Além de acompanhar a sequência do caso, os jornais teriam de contar como os juízes fundamentaram sua decisão. Nem sempre os jornais cuidam disso e decisões judiciais importantes, nem sempre autoexplicativas, permanecem misteriosas para os leitores.

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Rolf Kuntz é jornalista