‘Qual o papel do jornal de papel?’
A indagação vem sendo estampada em outdoors nas ruas do Rio de Janeiro, ora com a foto da socialite Narcisa Tamborindeguy, ora com o cartunista Jaguar, ora com o cronista Milton Cunha. É possível que haja outros nomes, outros rostos espalhados pelos bairros da cidade. Como não há informes adicionais, tudo indica que se trate de uma peça publicitária em torno de um seminário.
Geralmente, quando se especula muito sobre uma instituição, uma organização ou um objeto de conhecimento qualquer, é que o alvo do exame está em crise, quando não simbolicamente morto. O objeto de ciência é tanto melhor, e mais exato, quanto mais morto, espacializado, in vitro se apresenta.
Jaguar, Narcisa, Milton Cunha não são exatamente cientistas sociais, mas seu questionamento público sobre o papel da imprensa escrita tem legitimidade plena, na medida em que os fatos da comunicação social interessam hoje, como práxis (teoria e prática), a todo e qualquer cidadão, não apenas ao pesquisador acadêmico. A cidadania contemporânea se constrói nas malhas da comunicação, já que o próprio solo ‘orgânico’ da vida social é cada vez mais constituído de informação.
Detalhe sintomático
O ‘jornal de papel’ não está morto, nem condenado, mas certamente ameaçado. Embora os três maiores jornais brasileiros – Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo – possam ter registrado um aumento de 4,1% da circulação em 2005, assim como um índice satisfatório de faturamento publicitário, é fraco o ânimo para a comemoração frente à timidez dessa reação circulatória e, principalmente, à maré montante das preocupações.
Por quê? Como bem salientava numa de suas colunas Marcelo Beraba, o diligente ombudsman da Folha, ‘vários fatores atuam simultaneamente, como a concorrência com as novas mídias, o crescimento ininterrupto da internet e o fluxo livre de informação, a chegada dos blogs de notícias, as mudanças de comportamento, a falta de investimentos por conta da crise financeira’.
O deslocamento tendencial do papel para o monitor da internet já é algo que se comprova no dia-a-dia do tradicional público-leitor, mesmo aqueles assinam regularmente um ou mais diários. A frase ‘vi no online’ é mais freqüente do que ‘li no jornal’.
Um exemplo: na terceira semana de março ocorreu um tiroteio no interior de um ônibus, em pleno centro da cidade do Rio, entre um assaltante e um passageiro não identificado. O assaltante tombou, baleado. O acontecimento não teria nada de extraordinário no cotidiano carioca de hoje, não fosse por um detalhe sintomático – os passageiros uniram-se para lançar à rua o marginal ferido e ali abandoná-lo. Mas ‘sintomático’, de quê? No mínimo de uma alteração significativa no padrão de comportamento coletivo, de um traço comum de ódio e desespero por parte de uma cidadania acuada.
Texto de massa
Ora, o acontecimento, noticiado na internet, não apareceu em nenhum jornal de papel. ‘Vi no online’, enfatizaram as pessoas que prestaram ao fato atenção suficiente, para depois comentá-lo. O online é o lugar de um sem-número de notícias, significativas e insignificantes, ausentes do papel.
Não seria precipitado afirmar que aí se desenha uma tendência crescente no campo jornalístico contemporâneo, em que a internet parece deter progressivamente o primado das notícias breves, instantâneas, que pontuam o fluxo factual do espaço urbano. Ao jornal de papel, estão certamente reservadas outras tarefas, no sentido da qualidade informativa ou da reflexão, o que poderia curiosamente indicar um retorno, como observa Marcelo Beraba, ‘ao modelo do século 19, quando os jornais de elite custavam mais caro, mas eram lidos por uma elite’.
Neste caso, poderia corroer-se muito da velha força democrática e republicana do texto de massa, ou seja, do quê comunicado pela imprensa, em favor do a quem se destina o jornal.
Aguardemos, porém, o seminário prometido pelos outdoors, se é que se trata mesmo deste assunto. Todos nós queremos saber para onde vai o jornal de papel – se for.
******
Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ