Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A anatomia da ressaca

‘Emily, não atrapalhe.’ Foi assim que Colin Powell dirigiu-se no ar à vice-diretora de comunicação do Departamento de Estado que tentava interromper a entrevista que ele concedia via satélite à NBC.


Era exatamente isso que o presidente Lula da Silva deveria ter dito ao ministro Fulano ou ao assessor Beltrano – mais realistas do que o rei – que tentavam colocar mais lenha na fogueira do caso New York Times. Fez o contrário: mandou brasa na expulsão do jornalista Larry Rohter e colocou sob suspeita sua vocação democrática.


Até a tarde de terça-feira (11/5), era o senhor da situação, envolvido pela solidariedade federal. Naquela mesma noite, por artes de uma decisão extemporânea, foi remetido à condição de Geni – saco de pancadas da irritação nacional.


Ao invés de prestar atenção às competências do secretário de Imprensa e do ministro da Justiça – que, como bons profissionais lhe apresentavam soluções –, preferiu os carbonários que forçavam problemas. Resultado: as relações governo-imprensa, que já podiam ser consideradas insatisfatórias, foram rebaixadas para o nível de precárias.


Excesso de visibilidade


Esta não é uma questão que concerne apenas ao governo e ao partido do governo, esta é uma questão que diz respeito à sociedade. A imprensa é apenas a intermediária entre governantes e governados. Nesta condição de mediadora soube identificar as fragilidades do texto agressor assinado pelo correspondente do NYT, bem como captar a simpatia popular que envolveu o agredido.


Mas um dia depois da decisão de expulsar o jornalista e surpreendido com a mudança de ânimo da mídia, o presidente a acusou frontalmente de ‘corporativista’. Então ficou flagrante que Luiz Inácio Lula da Silva, o carismático líder operário que em 25 anos chegou à presidência da República, esqueceu a valiosa contribuição da mídia à sua biografia. Ou, se não a esqueceu, quer um repeteco integral e irrestrito. A esta altura, impossível.


O adjetivo ficou soterrado no monte de besteiras que foram ditas naqueles dias. Mas foi espontâneo, por isso significativo: a imprensa só é boazinha quando obedece aos ditames palacianos, quando os recusa é ‘corporativista’. Ou, quem sabe, escrava da Casa Branca e dos neoconservadores americanos.


É preciso lembrar que nos últimos seis meses, a partir de dezembro de 2003 (quando a realidade começou a impor-se às promessas eleitorais), ocorreram diversos esbarrões, cotoveladas ou fissuras entre o governo e imprensa agravados pela incompreensível dificuldade de trazer o grande comunicador que é Lula da Silva ao alcance dos meios de comunicação [N. da R.: veja abaixo remissões para matérias sobre as últimas trombadas entre governo e imprensa; e acerca da resistência do presidente da República a expor-se em entrevistas coletivas regulares].


O pior é que nos momentos de crise aguda o governo recorre invariável e abertamente aos truques do marketing trazendo para a ribalta o seu principal artífice em vez de mantê-lo nos bastidores, como recomendam os manuais.


Alguém precisa avisar o presidente Lula da Silva que jornalismo e marketing político, apesar de certas convergências no tocante aos objetivos finais, são funções e ações opostas. Todo marqueteiro gosta de jornalistas, bons ou maus. Mas bons jornalistas, em princípio, costumam desconfiar da excessiva visibilidade dos marqueteiros (em inglês spin doctors) que, como todos os médicos, só aparecem em caso de doença.


Ainda no bê-á-bá


Compreende-se a gratidão dos vitoriosos das últimas eleições presidenciais aos operadores de marketing político, mas a excessiva exposição e supervalorização desses gênios secundariza o trabalho eminentemente político que tem na imprensa e no jornalismo sua principal ferramenta.


Nesta semana de tantas emoções e libações ficou evidente a diferença entre jornalistas e ‘doutores de imagem’, entre os que estão com o pé no chão e os que preferem o salto alto. A divisão não é estrita porque junto com os jornalistas estão juristas e políticos e, no grupo dos cultores de imagem, outros jornalistas, cartunistas, diplomatas e os generalistas (como o ministro Tarso Genro, que resolveu classificar a imprensa americana como ‘uma das piores do mundo’).


Estes apostaram na radicalização, nas teorias conspiratórias e apocalípticas. Perceberam na onda de solidariedade em torno do presidente a oportunidade para soltar os demônios da xenofobia e estimular confrontos. Ferraram-se. E o governo com eles.


Agora, ao fazer a anatomia da ressaca, convém enxergar as falhas sistêmicas que a provocaram. A matéria de Larry Rohter só ganhou essa relevância toda porque, depois de 16 meses de intenso treinamento, o governo Lula ainda não ultrapassou o bê-á-bá do processo de tomar decisões e comunicá-las. Acreditou que um upgrade no nome da antiga Secretaria de Comunicação com o pomposo aposto de Gestão Estratégica abriria magicamente o caminho do reconhecimento popular.


Deveria ter feito como Colin Powell, que no meio da entrevista via satélite pediu que a assessora Emily não atrapalhasse. É assim que se trata os trapalhões.