Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A arrogância do silêncio diante da fraude

Um dos casos mais graves da história recente do nosso jornalismo – ou, pelo menos, um dos casos mais graves tornados públicos – vai ficar por isso mesmo, se depender do próprio jornal.

Em sua coluna de domingo (3/5), o ombudsman da Folha de S.Paulo faz saber que, embora não tenha dado explicações convincentes sobre o episódio da ficha policial falsa utilizada em matéria sobre a militância política da ministra Dilma Rousseff nos tempos da ditadura, a Redação considera o caso encerrado.

Na nota, Carlos Eduardo Lins da Silva informa que, já no dia 5 de abril, quando saiu a reportagem, um leitor enviara carta alertando que circulava na internet uma ficha falsa com aquelas características.

Só agora, quase um mês depois, ficamos sabendo disso. Só agora, porque a carta nunca foi publicada.

Como se sabe, a Folha deu a entender que só se mexeu para pesquisar a origem da ficha – o que seria um pressuposto para a publicação da matéria – depois que a ministra declarou a uma rádio, no dia 17 de abril, que o documento era ‘uma montagem recente’.

Em carta enviada ao ombusdman, dia 21, Dilma afirma que manteve contato com o diretor da sucursal de Brasília, Melchíades Filho, que lhe teria assegurado, a partir de informação da repórter responsável pela matéria, que a ficha era do Dops. Não era verdade, como se pode concluir do dissimulado pedido de desculpas que o jornal publicou numa página interna da edição de 25 de abril, no qual afirma que a autenticidade do documento ‘não pode ser assegurada – bem como não pode ser descartada’. Não era verdade, mas o jornal não faz qualquer referência a esse trecho da carta da ministra.

A origem suspeita

Também no dia 25, o jornalista Antonio Roberto Espinosa, ex-líder da organização guerrilheira da qual Dilma participava e principal fonte da matéria, divulga longa carta aberta ao ombudsman, em que afirma:

‘A ficha citada, na verdade, foi produzida recentemente por quadros que, na época da ditadura, eram subalternos, faziam o trabalho sujo dos porões. Hoje já estão aposentados, mas se sentem como os heróis do regime de terror e preparam armadilhas com o objetivo de desestabilizar uma virtual candidatura presidencial da atual ministra Dilma. Eu e alguns amigos fizemos uma pesquisa amadora na Internet e descobrimos que o primeiro a divulgar a ficha falsa, e seu provável autor, é o hoje coronel reformado (na época major) Lício Augusto Ribeiro Maciel, o Dr. Asdrúbal, torturador e assassino de dezenas de pessoas em Xambioá. A seguir foi reproduzida por dois dos mais conhecidos blogs da direita mais reacionária, também alimentado por quadros subalternos do regime militar, o `Ternuma´, do notório coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, e o `A verdade sufocada – As histórias que a esquerda não quer contar´, também mantido por sargentos e oficiais de baixo escalão dos porões’.

‘Caso encerrado’

No artigo de domingo (3), o ombudsman anota que o pedido de desculpas da Folha não teve referência de capa, como seria adequado, e que o jornal não observou seu próprio Manual de Redação, que prevê a identificação da fonte responsável por uma informação errada.

Ao buscar esclarecimentos, ouviu da Redação que ‘nenhum jornalista envolvido na produção e edição da reportagem original sabia da ficha falsa na internet’. Santa ingenuidade – ou, menos ironicamente, ‘incrível desinformação de jornalistas especializados’.

Finalmente, o ombudsman insiste na constituição de uma comissão interna para a apuração rigorosa do episódio, nos moldes do que ocorreu com a CBS, que divulgou uma denúncia falsa contra George W. Bush, na reta final da campanha presidencial de 2004.

Insiste em vão, pois ele mesmo informa que o jornal considera o caso encerrado.

Caso encerrado: afinal, foram apenas 55 leitores que se manifestaram sobre esse episódio na semana passada, todos criticando a Folha. Como um comerciante de secos e molhados, o jornal deve calcular: o que são 55 leitores, num universo de milhares? Uma insignificância. Daí essa atitude acintosa, esse arrogante desprezo pelo público. Porque é o público em geral que o jornal atinge, embora a gravidade da ofensa só seja percebida por essa pequena parcela que tem plena consciência dos compromissos éticos que todo jornal precisa assumir.

Ao público, as conclusões

No entanto, se a Folha não acha necessário esclarecer o público, o público pode tirar as conclusões que quiser desse episódio. Por exemplo:

1.

A carta do leitor que alertou para o documento falso que circulava pela internet não poderia mesmo ter sido publicada, porque levantaria de saída uma suspeita que desmontaria a matéria e evidenciaria a fraude. Logo, ao censurar – repito, porque é importante repetir, nesses tempos de tamanhos louvores à liberdade de imprensa: ao censurar a manifestação do leitor, a Folha sonegou uma informação crucial para todo o seu público;

2.

O Manual não foi aplicado porque não era mesmo o caso: a fonte que enviou por e-mail a ficha falsa não passou informação errada à repórter, não induziu o jornal a erro – quem trabalhava naquela ‘reportagem’ sabia desde sempre a origem do material. Não houve erro, mas cumplicidade para a perpetração de uma fraude;

3.

Se, como diz Espinosa em sua carta aberta, a fonte original é um notório torturador, podemos concluir, não sem algum espanto, a qualidade das relações que a Folha estabelece com esse tipo de fonte, por mais distantes que estejam os tempos em que a casa cedia suas camionetes de entrega para o serviço da Oban.

Para ‘cair a ficha’

O mais curioso é que, coincidentemente, a Folha acaba de divulgar suas diretrizes para uma ‘mudança editorial’ (ver ‘Folha comunica novas diretrizes à Redação‘). Não há qualquer novidade no documento, que apenas reitera o óbvio em relação ao trabalho jornalístico – ou melhor, à declaração de princípios do que deva ser o trabalho jornalístico. Que, é claro, se choca flagrantemente com o episódio da ficha falsa.

Como foi confrontada com o escândalo, não explicou nada e mesmo assim resolveu dar o caso por encerrado, a Folha enreda-se numa armadilha ao expor suas novas-velhas orientações editoriais: se ela mesma não se obriga a apurar a verdade sobre seus próprios atos, como cobrar a verdade de suas fontes? Como – só para dar um exemplo – encarar autoridades que dizem nunca saber de nada, se a Folha também não sabe e acha isso muito natural? Como, em síntese, exercer o jornalismo?

Justiça seja feita, porém: ainda assim a Folha nos presta dois grandes serviços. Porque tem um ombudsman, obriga-se a um mínimo de publicidade de seus atos. E, por explicitar tamanha arrogância, desmonta a tese sempre tão cara à polidez e ponderação de certos articulistas, que defendem a autorregulação da mídia.

Uma curiosidade final é o título que o ombudsman deu à sua coluna: ‘Até ver se a ficha cai’. Por maior que seja a perseverança nessa tarefa inglória de cobrar esclarecimentos, ele dificilmente se refere ao próprio jornal. Pode se referir ao leitor – àquele leitor com quem a Folha costuma dizer que tem o ‘rabo preso’ – que ainda não se deu conta do que está em jogo. Pode se referir a todos nós, que algum dia ainda haveremos de entender que não bastam artigos indignados e veementes diante de tamanha aberração: é preciso uma reação mais objetiva, que obrigue judicialmente o jornal a se explicar e a arcar com as consequências do que fez.

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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)