Um jornal mineiro, o mais tradicional da espécie, joga como bola da vez da sua pauta sempre enfadonhamente conservadora uma campanha a favor dos golpistas de Honduras.
No domingo (26/7), o diário publica dois textos nesse sentido. Um na página de Opinião e outro na de assuntos internacionais. O primeiro é de autoria de um de seus articulistas mais antigos, advogado afeito às nomenclaturas, exibindo, com destaque, como qualificação de seu nome, uma lista de títulos profissionais e de representação classista. O parafraseado, afetadamente autoconfiante, enfatiza o tom de quem quer desencorajar e intimidar, desde logo, qualquer atitude crítica a seu respeito ou de suas posições, considerando-as irrazoáveis. O estilo é, assim, psicologicamente, o do enfant terrible que cresceu habituado às loas de rebento prodígio da classe média. O taticismo verbal ou literário que imprime ao texto indica que qualquer discordância das suas posições é coisa considerada antecipadamente ridícula.
Quem lê com serenidade crítica o insígne articulista se dá conta, facilmente, que o que mais falta ali é objetividade e o que mais abunda é a raiva afetada dos críticos do status quo e a incapacidade de se distanciar cientificamente dele.
Não conheço a história de Honduras o suficiente para explicar pontualmente a reviravolta que está se dando naquele país. Mas que reviravolta hay, la hay! Um presidente saído das coortes dominantes, eleito com apoio delas, se rebelou da maneira mais ardita, consciente, ao mesmo tempo que explosiva, mas irrepreensivelmente ‘inocente’ do ponto de vista legal, propondo um referendo para convocar uma Assembléia Nacional Constituinte para mudar a Constituição do país no sentido de permitir a reeleição do primeiro mandatário. Há algum mal nisto, ou seja, em perguntar ao povo o que pensa de um assunto, mesmo que ele esteja protegido por uma ‘cláusula pétrea’ constitucional no interesse das mais petrificadas oligarquias dominantes?
Propor um referendo que autorize a instalação de uma Assembléia Nacional Constituinte é uma ofensa à legalidade, permitindo a prisão do presidente da ‘república’, o seu seqüestro no palácio do governo e sua expulsão do país? Estes fatos não bastam para confirmar que o país onde eles se deram é, com efeito, uma republiqueta de banana?
Malha de interesses
A questão colocada pela crise hondurenha é muito maior do que a de saber se o presidente errou ou não, foi legal ou ilegal, merecia ser preso e expulso do país. A questão é saber, primeiro, por que um presidente saído das oligarquias propôs uma reviravolta constitucional e depois por que, diante disto, as hostes civis e militares da elite bananeira de Honduras decidiram prendê-lo e expulsá-lo do país. E, ainda, decidir se é ou não sintomático que o governo de Barack Obama, assentado sobre tantas promessas de abertura ou de flexibilização da dureza imperialista de Bush e seus antecessores, se conduz de forma tão fraca no episódio envolvendo atitudes tão consensualmente golpistas?
Há uma contradição entre o presidente norte-americano e sua secretária para assuntos de política externa, Hillary Clinton, que repreeendeu Zelaya porque, com o apoio de meio mundo, está tentando voltar para casa, ou não há contradição alguma mas uma parceria para ela falar em nome dele, traindo as suas promessas?
Toda esta fraqueza, ambiguidade e contradições com as promessas de respeito pela democracia não serão porque o presidente dos EUA está preso na malha dos interesses dos seus aliados tradicionais em Honduras, em outros países da América Central e dos clientes norte-americanos daquelas mesmas elites bananeiras? Esta mesma trama não o envolve ou o envolverá também em outras situações do tabuleiro internacional?
Ímpetos bachalerescos
O que está acontecendo na América Central é, generalizadamente, enfim, uma crise que serpenteia no mundo inteiro, envolvendo os países mais ‘coloniais-colonizados’, configurados num planetário ‘elo mais fraco’ da cadeia de controle exercido pelo imperialismo, em busca de um establishment social e político mais adequado para gerir a realidade ou equilíbrio sociopolítico interno e regional.
Esta crise, mudando as relações de poder, mexe naturalmente com as hegemonias locais e internacionais. Há, nesse sentido, uma indefectível relação entre os fatos que se dão no Oriente Médio envolvendo Irã, Iraque, Afeganistão, Palestina e Israel, Paquistão e Índia; na Ásia envolvendo também a Coréia do Norte e do Sul; na América Latina, os países social e politicamente mais fracos, como Paraguai, Bolívia, Equador e agora os da América Central, Nicarágua e Honduras que se reorganizam com o apoio da Venezuela, escudada na fartura petrolífera e no protagonismo de Hugo Chávez.
Os arautos golpistas do jornal mineiro só enxergam a árvore e não veem, por incapacidade política e mesmo intelectual, a floresta. A crise hondurenha e o caso Zelaya são apenas um grão de areia neste vasto panorama mundial da crise atual. E que não se venha tentar desmerecer, com ímpetos bachalerescos e no interesse – consciente ou não – do golpismo esta visão mais ampla. Só ela permite uma abordagem não só mais crítica, mas também mais responsável ou, se quisermos, isenta, ou ainda melhor, objetiva, para tratar toda a crise planetária e/ou qualquer um dos seus capítulos.
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Doutor em Filosofia pela Universidade de Urbino (Itália) e professor aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG