Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A boa cobertura interferiu nos fatos

O recuo do governo diante da fusão do Pão de Açúcar e do Carrefour foi a primeira grande notícia econômica de julho, no plano interno. A imprensa teve um duplo papel nessa história. Noticiou os fatos e contribuiu de forma importante para a decisão da presidente Dilma Rousseff. Os meios de comunicação cobriram amplamente as negociações. Contaram as encrencas entre os sócios brasileiro e francês do Pão de Açúcar. Deixaram claros os perigos assumidos pelo governo ao se envolver na fusão. O trabalho produziu resultados.

O Valor noticiou na sexta-feira (1/7), em manchete, a ordem do Palácio do Planalto para o BNDES, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, tomar cuidado com a fusão dos grupos Pão de Açúcar e Carrefour. Todos os grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo citaram a “nota de esclarecimento” divulgada pelo banco no dia anterior, mas só um jornal contou, naquele dia, a história por trás da decisão. Dois dias antes havia aparecido no site do BNDES um comunicado sobre uma possível operação em montante equivalente a até 2 bilhões de euros, por meio da subsidiária BNDESPar. Por que um novo informe em tão pouco tempo?

Negócios, negócios

A explicação estava na matéria do Valor. A Presidência da República havia reagido, afinal, à repercussão negativa das notícias sobre a fusão. Nessa altura, o ministro do Desenvolvimento Fernando Pimentel e a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, já haviam defendido publicamente a associação dos dois grupos gigantes e a participação do BNDES no empreendimento.

Já na primeira nota a diretoria do banco havia tentado essa defesa. Mas o grupo Casino, sócio do Pão de Açúcar, criticou a iniciativa do grupo brasileiro e ameaçou ir à Justiça contra o negócio. Além disso, a junção de duas grandes companhias para formar uma poderosíssima rede varejista seria passível de contestação pelos órgãos de defesa da concorrência. Todos esses dados a imprensa mostrou.

A percepção do risco parece haver chegado ao gabinete presidencial. Era melhor seguir mais devagar e com menos entusiasmo no apoio à fusão. A ordem deveria valer, pode-se supor, tanto para o BNDES quanto para os ministros.

O Valor havia sido o primeiro a noticiar os contatos entre o empresário Abílio Diniz, principal sócio brasileiro do Pão de Açúcar, e o comando mundial do Carrefour. A liderança foi mantida quando o assunto esquentou e ganhou maior espaço em todos os jornais.

Uma boa contribuição da Folha de S.Paulo foi um levantamento dos negócios –frequentemente polêmicos ­– do BNDESPar. Esse braço do BNDES para investimentos já aplicou R$ 42,6 bilhões na compra de participações em empresas de vários setores, incluídos mineração, petróleo, celulose, telefonia e carnes.

Alguns desses negócios, como a ajuda ao grupo JBS Friboi para a compra de frigoríficos no exterior, foram muito criticados. A matéria da Folha incluiu um bom quadro com a evolução dos investimentos e os valores aplicados em cada empresa. Segundo o quadro, o investimento na fusão do Pão de Açúcar e do Carrefour, se concretizado, será uma das três maiores operações do BNDESPar. O material foi especialmente oportuno porque a discussão, durante a semana, também foi em torno da função adequada a um grande banco público de desenvolvimento.

Sem cabresto

A contribuição especial do Estado de S.Paulo, no mesmo dia, foi uma notícia sobre uma possível manobra do Casino, por meio de uma subsidiária colombiana, para comprar parte das ações de Abílio Diniz no Pão de Açúcar. Toda essa movimentação serve para explicar facilmente a decisão do governo de tratar a fusão com mais cautela.

No sábado (2/7), a Folha de S.Paulo e o Estadão – este em manchete – noticiaram na primeira página a condição do governo para investir na fusão: o entendimento entre sócios do Pão de Açúcar. Nesse dia, o Globo só apresentou o assunto na página 3 do caderno de Economia. O destaque foi para a depreciação do dólar, negociado no dia anterior a R$ 1,558. Foi o menor nível desde janeiro de 1999, quando o governo, forçado pela crise, abandonou a banda cambial. O passo seguinte seria a adoção do câmbio flutuante, em vigor até hoje.

Até o fim da semana a hipótese de investimento na fusão ainda era mantida pelo governo. Mas tinha ocorrido pelo menos uma reação positiva às dúvidas e advertências apresentadas pela imprensa em reportagens e editoriais. Meios de comunicação sem cabresto e empenhados em competir no jogo da informação podem prestar bons serviços.

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[Rolf Kuntz é jornalista]