Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A boa nova não foi notícia

Os mais velhos ainda lembram da velha Hora do Brasil dos tempos do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e do famoso ‘Aviso aos navegantes’, freqüentemente completado com a informação: ‘Não há aviso aos navegantes’.

A discussão durou anos nas rodas jornalísticas: se naquele dia não há ‘Aviso aos navegantes’ por que razão anunciá-lo? Simplesmente para lembrar aos navegantes de que amanhã poderá haver novidades em matéria de bóias e faróis no litoral brasileiro. A não-notícia era notícia porque noticiava que nada de novo ocorrera.

O que nos leva ao velho ditado anglo-saxão ‘No news is good news’, que em vernáculo poderia ser traduzido para ‘nada de novo é uma boa nova’. E dele vamos ao velho adágio das redações: quando o cão morde alguém isso não é notícia, mas se alguém morde o cão, isso sim, é notícia. Apesar da pitoresca diferenciação, não se deve ignorar que as estatísticas sobre pessoas mordidas por cães podem ser altamente relevantes – e que o inusitado fato do homem morder o cão, se repetido, pode converter-se na maior chatice.

Questão central

A celeuma criada depois da solenidade no Palácio do Planalto, em comemoração ao Dia do Jornalista (quarta, 7/4), tem o mesmo sabor do ‘Aviso aos navegantes’, do ditado inglês e da historieta sobre mordidas e cães. Ao receber uma delegação da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), diante do presidente da República, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Luiz Gushiken cobrou da mídia ‘boas notícias’. Na sua opinião a sociedade tem o direito de ser igualmente informada sobre a ‘agenda positiva’. Para evitar um mal-entendido, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apressou-se em propor uma ‘relação leal’ entre governo e imprensa.

A fala de Gushiken, obviamente, rendeu chamadas nas primeiras páginas, iradas reclamações de jornalistas, furibundos comentários de quem se considera acima do bem e do mal e não admite críticas.

Pergunta-se: é a primeira vez que alguém reclama dos critérios noticiosos da mídia contemporânea? São inéditas as queixas ou desabafos de autoridades com os procedimentos jornalísticos? Reis, presidentes, imperadores e mesmo tiranos consideram-se satisfeitos com o espelho oferecido pelos meios de comunicação? É legítimo reclamar do Judiciário, da magistratura, do Ministério Público, do Executivo, do Legislativo, do FMI e da ONU mas a mídia deve continuar como a vestal incontestável?

Se hoje o media-criticism (crítica da mídia) é considerado um avanço democrático ao estabelecer um contrapoder ao poder da imprensa, este ouriçamento parece despropositado. Discutir a mídia é tão democrático quanto protestar contra aqueles que querem orientá-la. Avaliações sobre o desempenho da mídia são rotina quando se pretende uma visão ampla do processo político, cultural e/ou sociológico contemporâneo. No último domingo (11/4), apenas na Folha de S.Paulo, a mídia foi mencionada pelo sociólogo francês Edgard Morin, o orientalista inglês Bernard Lewis e pelo recentemente falecido sociólogo Otávio Ianni, na última entrevista que concedeu.

Na Sociedade da Informação quem não fala, comenta, debate ou reclama dos meios de informação está distante da questão central do nosso tempo. Os jornalistas deveriam ser os primeiros a lembrar-se que hoje o jornalismo é notícia. E muitas vezes não é boa notícia.

Boa memória

Na competição para ver quem bate mais forte no ministro Gushiken foi esquecido um dos motivos da audiência que gerou o bate-boca: a festa foi organizada para atender à Fenaj, que reivindica do governo o encaminhamento ao Congresso de projeto de lei propondo a criação do Conselho Federal de Jornalismo.

Este é um absurdo muito maior do que qualquer reclamação governamental contra o noticiário negativo. Os coleguinhas da Fenaj, inebriados pela aproximação com o poder, simplesmente esqueceram da indispensável separação entre governo e imprensa. Tal como o patronato jornalístico, as entidades profissionais querem a sua colher da chá – uma nova autarquia a ser criada pelo ministro do Trabalho e transformada na entidade máxima da categoria. Antigamente isto chamava-se peleguismo, hoje deve existir alguma designação ‘politicamente correta’.

Enquanto a regulamentação da profissão de jornalista não for definitivamente esclarecida numa instância superior não faz sentido criar um conselho nacional. A antecipação é uma aberração jurídica. Além disso é preciso discutir outra grave questão sob o ponto de vista deontológico e ético: o jornalista pode ser simultaneamente assessor de imprensa? Não há nesta duplicidade um grave conflito de interesses?

Não se pode ficar de costas para a realidade: hoje, grande parte dos jornalistas sindicalizados são, na realidade, assessores de imprensa. Nada contra assessorias, nada contra assessores, mas é outra profissão, igualmente séria, legítima, necessária e respeitável. Mas um futuro Conselho Federal de Jornalistas não deve ser construído em cima de equívocos sob pena de comprometer a sua autoridade futura.

A grande verdade é que o alvoroço em torno da fala do ministro Gushiken sepultou um debate que não pode ser escondido da sociedade. No duelo retórico sobre boas e más notícias, poucos prestaram atenção no comentário do presidente Lula quando lembrou aos jornalistas presentes a inutilidade da greve em 1979. Lula não entrou em detalhes, mas aquela parede foi um dos nossos maiores desastres sindicais com prejuízos pelos quais todos os jornalistas, de todas as gerações, pagam até hoje.

A boa nova é esta: o presidente da República tem boa memória. Mas isto não foi notícia.