Meses de rumores, boatos, informações e contrainformações desembocaram na quarta-feira (27/1) no Apple Event, em São Francisco, Califórnia (EUA), com o anúncio de Steve Jobs trazendo à existência uma nova criatura: o iPad. Dois adjetivos bastaram para incendiar a imaginação dos obcecados por novas tecnologias – e Jobs as pronunciou pausadamente: trata-se de um produto ‘mágico’ e ‘revolucionário’.
Qual Moisés descendo do monte com as tábuas da lei, Steve Jobs subiu ao palco com sua tábua (tablet) multifacetada, de onde se pode ler livros (e todas as resenhas sobre os mesmos disponíveis na web), escutar música (e saber mais sobre compositores e intérpretes), assistir a filmes (e saber sobre custos de produção, prêmios a que concorre, biografia do elenco), escrever mensagens (por exemplo, reclamando porque o iPad não tem porta para conectar webcam), rodar videogames, exibir e editar imagens… e tudo isso na ponta dos dedos sobre uma plataforma de 24,6 centímetros, com 1,3 cm de espessura e peso de 680 gramas.
Na apresentação de Jobs, uma cena particularmente interessante foi a tela do novo produto reproduzindo a capa do The New York Times. Não é segredo, ao contrário, é objeto de análise de 10 entre 10 profissionais que fazem a crítica da mídia, que donos de jornais e de editoras nutrem grandes esperanças de que o tão esperado computador-leitor da Apple atraia novos leitores e reforce sua receita, mas também parece ser verdade que poucas esperam que ele reverta por si só a queda de um setor em crise.
Grupos editoriais como Time Warner, Conde Nast, New York Times Co. e HarperCollins, parte da News Corp., devem aguardar um pouco para ver se o caçula da linha de montagem da Apple conseguirá salvar a mídia impressa. O analista Mike Vorhaus, presidente da Magid Advisors, estimou que o tablet poderia elevar em 10% a 20% receita digital dos grupos editoriais. Pouco. Mas em mar aberto onde ninguém consegue ver ainda terra firme já é algo para celebrar.
Círculo vicioso
Voltando ao NYT, estamos diante de jogada muito inteligente porque ocorre exatamente quando os jornais se desesperam para que a água não lhes ultrapasse a linha do nariz. É a luta pela sobrevivência nossa de cada dia. Tanto que Jobs apresentou o iPad em conjunto com o aplicativo especialmente criado pelo NYT para rodar no iPad. Jogada de mestre, hein? E esse aplicativo simula no mundo virtual a experiência de ler jornal no mundo real, tendo um formato muito parecido com o jornal de papel, assimilando desde logo as funcionalidades presentes até então no iPhone, como marcar artigos para ler depois etc.
No iPad, é possível escolher a quantidade de colunas, tamanho do texto e navegar como se estivesse virando páginas. Não à toa, notícias dão conta que um grupo de investidores que está lutando por posições no conselho da New York Times Co. – e esse grupo bate o bumbo para que o NYT adquira empresas de internet. Antes que esqueça: a National Geographic anunciou também uma parceira com a Apple para oferecer versão digital de suas publicações para iPad.
Mas nem tudo são flores. O iPad vem com falhas absolutamente inexplicáveis. Não poderiam ter deixado dois dedos de genialidade para colocar nele um cartão SD para transferir arquivos facilmente? E a bendita portinha USB democratizando a bugiganga, tornando-a mais sociável com computadores do Bill Gates, com tantos outros dispositivos que fazem render o tempo de quem prefere a vida virtual à real?
Pelo que li, pela pesquisa que fiz e vídeos a que assisti, o mais grave defeito do iPad é não ser multitarefa: ou você lê um livro ou digita uma mensagem ou então deixa de fazer essas coisas e fica apenas escutando ‘Quadros de uma exposição’, de Modest Mussorgsky Uma coisa é ler um livro enquanto passeia de bicicleta pelo Parque da Cidade, em Brasília. Outra coisa bem diferente é ler o que acontece em Davos e em Porto Alegre enquanto espera alguém responder mensagem em cima de sua última observação (por escrito) usando o Skype. E isso é assim porque todo mundo tem um pouco de Hugo Chávez em sua marcha batida para controlar tudo. E Steve Jobs quer controlar tudo com seu iphone, seu ipod, seu imac e agora seu iPad.
Competência reconhecida ele tem. Genialidade e o pacote de excentricidades que fazem alguém se tornar gênio ele também tem. Já tem gente fazendo fila para manusear um iPad inteiramente destravado de forma que se possa instalar os programas que bem entender. É aí que a festa começa pra valer. Até lá há que se esperar o estilo contagotas da Apple de ir liberando tudo aos poucos como um strip-tease cibernético. A verdade é que Jobs e sua turma já podiam lançar o IPad melhor resolvido, multitarefa… mas a regra do jogo é criar dificuldades para aguçar o desejo e então vender facilidades. É o círculo vicioso do consumo acima de tudo. Enquanto houver um vazio dentro de você a Apple – e mais uma centena de marcas globais – tudo irá fazer para preenchê-lo.
Na pele
Saindo dos limões e correndo para a limonada, outra verdade é que um produto robusto, com muitas qualidades. A primeira delas é que receitado para quem detesta interagir na web mediado por teclado e mouse. É tudo no toque mesmo. Nossos olhos recebem nova configuração, desocupam seu espaço no rosto e ficam ali, colados, na ponta de nossos dedos. É simplicidade em estado bruto. Por mais que sejamos presas fáceis de multitarefas existe um formidável contingente de pessoas que continuam a fazer, desde que o mundo é mundo, uma coisa de cada vez. São pessoas que quando abrem mais de um programa na tela se sentem ansiosos a ponto de achar que irão ‘perder’ alguma coisa e depois nunca mais achar. São pessoas que escrevendo um documento o salvam a cada dois minutos, com um nome diferente. Para essa pessoas o céu desceu à terra
O iPad tem processador de 1 GHz e segundo Jobs suporta rodar até 10 horas de vídeo com uma única carga. Em repouso, a bateria pode durar um mês. Eu só acredito vendo. Minha crença nessas baterias de computadores portáteis é tão grande quanto minha confiança que o Tibete será um país livre e o Dalai Lama será recebido nas encostas de Lhasa com festa e burburinho. O chefe da maçã nunca descuida seu público-alvo e sabe que este é bem estratificado, uns com muito dinheiro, outros com pouco e sua resposta – sempre bem sucedida na socialização de seus produtos – é imediata: o dispositivo será vendido em duas versões e três diferentes capacidades de armazenamento de dados. Uma versão, que não suporta conexão a redes 3G, terá preços de US$ 499 (16 GB), US$ 599 (32 GB) e US$ 699 (64 GB).
Continua em alta a tendência de otimizar espaço físico. O fato é que máquinas, equipamentos e tantos instrumentos que atravancavam nossa casa e que atendiam nossa necessidade de acesso a meios culturais e entretenimento individual e familiar hoje ocupam o espaço mínimo de uma bolsa. E o iPad reúne diversas características necessárias a um dispositivo de entretenimento e apelo universal. A empresa fez parceria com desenvolvedoras de games, como a Electronic Arts, para a produção de títulos para os quais a máquina possa dar suporte e também com a Disney e CBS, permitindo que os consumidores tenham acesso ao melhor da TV na tela do computador.
O iPad posiciona a Apple de forma direta no mercado editorial do qual a Amazon.com foi pioneira com o leitor eletrônico Kindle. A grande diferença é que o iPad desbanca o Kindle por agregar cor e vídeo e, certamente, irá revolucionar o setor editorial da mesma maneira que o iPod mudou a música. Além disso, a nova criatura da Apple se conectará com uma loja de livros eletrônicos, a iBooks Store, lançada em parceria com cinco grandes editoras norte-americanas (Penguin, HarperCollins, Simon & Schuster, Macmillan, e Hachette Book Group).
Os grupos editorais ainda sentem na pele o dano que a loja digital de música iTunes, da Apple, causou às gravadoras, ao ditar preços e permitir que os consumidores adquirissem as faixas individuais desejadas, o que destruiu as vendas de álbuns. Se forem espertos verão que Jobs foi ao ringue e os chama à luta. Entrar na luta, neste caso, é unir forças visando criar uma poderosa loja virtual para seus títulos, jornais e revistas. E de quebra entregar à clientela, a custo simbólico, sua própria maquininha.
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Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter