Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A cobertura dos veículos brasileiros sobre a Alemanha: erros de informações e estratégias

A revista Fórum cometeu um erro crasso ao noticiar, em matéria veiculada no dia 15 de fevereiro, a passeata realizada na cidade de Erfurt, capital da Turíngia. O lema era “Não aos pactos com os fascistas: nunca e em lugar nenhum!”. Essa passeata aconteceu depois de um terremoto político que começou no parlamento regional da Turíngia com a eleição de Thomas Kemmerich, do Partido Liberal, com votos do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha. O fato de parte do CDU na Turíngia se juntar a extremistas para eleger Kemmerich e evitar o “socialista” Bodo Ramelow, do partido esquerdista Die Linke, causou um terremoto político que deixou o país em estado de consternação durante três dias. O tremor de terra iniciou na Turíngia, mas seus desdobramentos chegaram a Berlim e levam o CDU, partido de Angela Merkel, à sua maior crise de identidade dos últimos anos. Seu ápice, até agora, foi a renúncia da atual chefe, Annegret Kramp-Karrenbauer, que havia sido escolhida por Merkel como sua sucessora, mas que se mostrou inapta e sem autoridade suficiente para lidar com o clube do bolinha e com os “rebeldes” do CDU regional da Turíngia, que fizeram um pacto com o diabo. Agora, o ringue está aberto para os candidatos. Tudo o que Merkel não queria era esse “tudo novo de novo” quando está prestes a deixar a carreira política, em 2021. Sem o seu controle e sem meticuloso planejamento, que foi por água abaixo, o tempo corre contra ela.

Naquele maldito 5 de fevereiro de 2020, o partido outrora de tradição liberal e pelo direito dos cidadãos (FDP, na sigla) “deitou-se na cama com os nazistas e se prostituiu” para ter seu candidato eleito, como interpretou o editor-chefe do jornal Die Süddeutsche Zeitung, Heribert Prantl, em videocomentário no Facebook. O plano de Kemmerich também arranhou a imagem do chefe do partido em Berlim, Christian Lindner, que só se manteve no cargo pela atual falta de opção de sucessão em um grupo que já fez história, mas que hoje vende a alma para obter cargos.

Checar informações

De acordo com o portal da polícia da Turíngia, responsável pela segurança da passeata realizada em 15 de fevereiro, havia 9 mil pessoas no ápice do protesto. A matéria na revista Fórum fala de “milhares”, número que pode ir de mil até 999 mil. Não basta “somente” veicular que um número X de pessoas vai às ruas na Alemanha para protestar contra o fascismo. É preciso concretizar o número, posicionar o contexto e dar ao leitor que não vive a rotina política da Alemanha um quadro suficientemente abrangente para entender a complexidade do momento de mudança de paradigma no âmbito político partidário.

Puxar as notícias “secas” das agências economiza correspondentes e autores in loco, mas tem, por outro lado, um grande custo: o de ratificar estereótipos e rótulos de jornalistas que nem estão no país e muito menos dominam o idioma. A matéria da revista Fórum tinha somente dois ganchos: Alemanha, passeata contra o fascismo. Todo o resto, a redação ficou devendo.

O erro crasso da Fórum foi veicular uma foto que exibe exatamente uma das inúmeras passeatas de fascistas e neonazistas no leste da Alemanha. Isso gera cliques num país onde grande parte da imprensa sabe que é só juntar expressões como nazismo, Hitler, Goebbels e fascismo para os comentários nas redes bombarem e garantir audiência. Quem fica a ver navios são os leitores à procura de diferenciação e de cuidado da redação também ao escolher as fotos para ilustração dos artigos.

O número inflacionário de bandeiras nas cores preta, vermelha e dourada não foram índices suficientes. Em nenhuma passeata na Alemanha (ou mesmo em qualquer lugar), seja pela diversidade, pela inclusão ou pela união da sociedade (com a hashtag #Unteilbar), haverá sequer uma bandeira com as cores do país. É exatamente esse instrumento que identifica os nacionalistas, que instrumentalizam a bandeira como último guardião da “cultura alemã”.

A Folha foi mais atenta, em sua reportagem sobre a mesma pauta.

Ordem mundial obsoleta

Enquanto a Rede Globo mantém um correspondente em Londres, Inglaterra, país que, no mais tardar depois do brexit perdeu toda a sua relevância política na Europa, grande parte da mídia brasileira continua pautando Nova York como o centro do mundo, ignorando o fato de que a Alemanha (ainda) é o país que dá as cartas na União Europeia. E Bruxelas, capital de um país tamanho míni e que só tem o título de sede da UE, há pouco tempo é o terreno do qual a Folha envia matérias da Europa, incluindo acontecimentos na Alemanha, na Escócia e em outros países do Velho Continente. O aspecto do trabalho in loco acaba ficando totalmente desapercebido. Com a mídia brasileira lutando pela sobrevivência, o “luxo” de ter um correspondente em cada país é coisa do passado. Para a Rede Globo, Londres e Roma continuam sendo o centro do mundo. Para a Folha, esse lugar é a capital belga.

A correspondente da GloboNews em Berlim ainda teima em chamar Angela Merkel de “primeira-ministra”, quando toda a Europa sabe que seu título oficial é de chanceler federal.

Em novembro último, o caderno Boa Viagem de O Globo veiculou uma matéria originalmente publicada pelo NY Times sobre a queda do Muro de Berlim, ao invés de entrevistar testemunhas de época.

O Estadão calou as vozes femininas na Europa depois das eleições presidenciais de 2018 e depois do editorial “Bolsonaro ou Haddad: uma escolha difícil”. As vozes de mulheres eram de Lisboa e Berlim.

Desde então, em velocidade blitz, o jornal se tornou um exclusivo clube do bolinha voltado para o próprio umbigo e sua vaidades. Um jornal que já teve cineastas mulheres como colunistas e grandes jornalistas mulheres, agora ocupa camarote no lugar comum.

Para um jornal como a Folha, dado como “acabado” na primeira entrevista de Bolsonaro ao Jornal Nacional (Rede Globo) como presidente eleito, sua teimosia e sobrevivência são super bem-vindas..

Ainda falta, para grande parte da imprensa brasileira, mais do que o cuidado e atenção ao escolher as pautas, fotos e colunistas, mas o olhar para “além da beira do prato”, como diz um ditado popular da Alemanha. Atualizar a ordem mundial e decidir para que cidades enviar seus correspondentes precisa ter como leme não a possibilidade financeira ou a facilidade logística, mas a relevância político-econômica. Só esse olhar garante o jornalismo mais completo.

Hermano Henning, como correspondente da Rede Globo em Bonn, antiga capital da Alemanha, e Graça Magalhães-Ruether, do jornal O Globo, fizeram toda a diferença em forma e conteúdo nas matérias sobre a Alemanha. O olhar atento, o esmero e a checagem das fontes devem voltar a ser instrumentos diários nas redações de jornais no Brasil, especialmente nesses tempos de estrangulamento do quarto poder no Estado.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.