Os cadernos de Economia transformaram-se em cadernos de crise. Nada mais natural. O mundo enfrenta a maior crise financeira desde os anos 1930 e pode afundar numa recessão, puxado pelos Estados Unidos e outras potências desenvolvidas. A situação é nova, mas a produção e a edição do material parecem continuar no padrão rotineiro. O trabalho de juntar os pedaços de informação e confrontar declarações e opiniões continua a cargo do leitor. Essa tarefa é especialmente importante quando as declarações são de autoridades e o tema é a política econômica. Mas cabe ao comprador do jornal organizar a própria memória, reter a leitura dos dias anteriores e tentar descobrir, por exemplo, se os ministros da Fazenda e do Planejamento não estão trombando ou pelo menos em rota de colisão.
Mostrar se há desacordo entre os dois não é mera fofoca. A proposta orçamentária para 2009 tramita no Congresso e já se fala numa revisão em novembro. Quem admite ajustar a proposta a um cenário menos favorável? O ministro da Fazenda, Guido Mantega, continua dando um show de otimismo –ou continuou, pelo menos, até a semana passada. ‘Não estamos a salvo, mas não vejo necessidade de revermos projeções’, disse o ministro, na entrevista escolhida como principal matéria da Folha de S.Paulo no domingo (19/10). Não é hora, segundo ele, de pôr o pé no freio. Ele admite crescimento menor em 2009, com desaceleração de 6% para 4%, mas isso, argumentou, já era esperado antes da crise.
O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, havia usado um tom diferente nos dias anteriores. Numa entrevista ao Estado de S.Paulo, havia admitido a hipótese de uma revisão do projeto de orçamento. Ainda seriam, ressalvou, necessárias mais informações para uma decisão, mas suas palavras, de modo geral, foram muito menos triunfais que as do colega da Fazenda. Bernardo insistiu, também, na manutenção integral do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Nisso coincidiu com Mantega. Ambos apenas ecoaram, com disciplina, a orientação indicada publicamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Chamadinha útil
Mas todo repórter sabe, ou deveria saber, quanto vale a promessa de manutenção do PAC, ou, de modo geral, dos programas de investimento. Neste ano, o governo investiu, até setembro, 40% mais que um ano antes. Mas, nesse período, foram empenhados apenas R$ 18,98 bilhões, 44,9% dos R$ 42,21 bilhões autorizados para 2008. O desembolso ficou em R$ 17,02 bilhões. Desse total, R$ 13,28 bilhões corresponderam a restos a pagar. Das verbas do ano só foram desembolsados R$ 3,74 bilhões, ou 8,8% do valor previsto no orçamento. Quando se incluem dados como esses no material publicado, a informação passada ao leitor muda substancialmente.
Além do mais, o relator-geral da proposta orçamentária, senador Delcídio Amaral (PT-MS), já havia falado mais de uma vez sobre a conveniência de adaptar o projeto a um cenário menos favorável. Na quinta-feira (16/10) ele conversou com o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles. O senador negou ter recebido de Meirelles novas projeções para 2008, mas deu a entender, muito claramente, haver saído do encontro com uma visão nada otimista. Seu relatório, afirmou o senador, deveria conter indicativos de cortes tanto no custeio quanto no investimento – preservando, tanto quanto possível, as obras do PAC.
Até o domingo (19), nenhum grande jornal do Rio e de São Paulo havia apresentado, nas páginas de Economia, uma boa matéria sobre o assunto, englobando as preocupações do senador Delcídio Amaral e as avaliações dos ministros do Planejamento e da Fazenda. A figura do senador, nesse caso, merecia maior atenção: tradicionalmente, no Brasil, o orçamento sai do Congresso mais gordo do que entrou. Desta vez, o relator falou em cortes e, além disso, ainda foi trocar figurinhas com o pessoal do BC. De modo geral, os grandes jornais mencionaram o trabalho de Delcídio Amaral, mas com destaques diferentes e sem valorizar a maior novidade – a atitude do relator.
O trabalho de juntar os pedaços poderia ir muito além do material sobre o orçamento. Os cadernos de Economia apresentam, nas mesmas edições, matérias sobre indicadores econômicos do Brasil e do exterior, notícias de empresas (perdas financeiras, por exemplo), informações sobre o crédito e sobre as iniciativas do BC e declarações de autoridades. Uma chamadinha organizada, na abertura do noticiário, ajudaria o leitor a avaliar o enorme volume de material oferecido diariamente. Quanto a esse ponto – o volume a variedade do material – ninguém tem motivo razoável para se queixar.
Atenção, pauteiros
Pela riqueza do material informativo, o brasileiro é pelo menos tão bem servido, nesta crise, quanto os leitores dos grandes jornais americanos ou europeus. Além do noticiário, tem recebido também artigos importantes, como os do economista Paul Krugman do financista Warren Buffett, na semana passada.
Parte do material mais interessante, no entanto, fica perdida no meio ou no fim dos cadernos, sem a preciosa chamadinha orientadora. Valor, Estadão e Folha de S.Paulo, por exemplo, deram interessantes matérias sobre a China. A economia chinesa, segundo a maior parte dos analistas, deve ter, em 2009, um papel ainda mais importante que nos últimos anos como um dos motores da economia mundial. De acordo com as projeções correntes, será um dos poucos motores. No entanto, o material publicado pela imprensa brasileira tem apresentado um quadro um pouco diferente.
Na quinta-feira (16/10), o Valor publicou duas excelentes matérias: uma entrevista com o professor Michael Pettis, de finanças da Universidade de Pequim, e um artigo de David Pilling, traduzido do Financial Times. Na entrevista ao Valor, o único jornal a apresentar o assunto com uma grande chamada na capa, Pettis mostra uma China menos preparada do que em geral se supõe para continuar crescendo na crise sem grandes problemas e sem a geração de maiores distorções. O artigo de Pilling trata de vários países e seu título é pouco animador: ‘A verdade por trás do conto de fadas asiático é mais sombria’.
No sábado (18), o Estadão contou a demissão de 6.500 trabalhadores de duas fábricas de brinquedos fechadas no sul da China. Não sobreviveram à crise nos Estados Unidos, principal destino de suas exportações. A matéria mostra o aperto das margens de lucro das indústrias chinesas, por causa da redução do mercado externo, e descreve medidas tomadas pelo governo de Guangdong para socorrer pequenas e médias empresas.
No domingo (19), a Folha de S.Paulo mostrou estratégia do governo chinês para manter as exportações e limitar os efeitos da desaceleração global. A estratégia inclui maiores vendas à América Latina, à África e à própria Ásia.
Mas não seriam a China e outros emergentes a salvação da balança comercial brasileira em 2009? Talvez até venham a ser, mas, por enquanto, os sinais apontam numa direção diferente. A indústria brasileira, como já mostraram algumas boas matérias, prepara-se para uma invasão de produtos chineses muito baratos, desviados de mercados em recessão, como o americano.
Os governos brasileiro e argentino concordaram em elevar a tarifa externa comum (TEC) para conter aquela invasão. Mas o governo argentino tomou também outras medidas, separadamente, e os produtores brasileiros poderão ser atingidos. Mais um ponto importante para a atenção dos pauteiros.
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Jornalista