Dois dos três jornalões de referência nacional são editados em São Paulo, assim como todas as quatro revistas semanais de informação. Teoricamente, isso não teria a menor importância. Na prática produz resultados desastrosos.
O primeiro editorial da Folha de S.Paulo de segunda-feira (13/3, pág. 2), sobre a ocupação de algumas favelas cariocas por tropas do Exército, retrata com fidelidade as aflições dos porteiros (gatekeepers) de importantes redações quando confrontados com a necessidade de se manifestar sobre problemas regionais que desconhecem. Mesmo no caso do Rio de Janeiro, ex-capital federal. A saída em geral é apelar para o repertório politicamente correto e obsoleto que, aliás, carece urgentemente de atualização.
‘Preservar o Exército’ é o título do editorial do Folhão, e a partir dele se oferece aos leitores uma visão não apenas ingênua e irreal mas, sobretudo, errônea:
‘(…) O maior risco de submeter [as Forças Armadas] a incursões freqüentes e prolongadas nas violentas cidades brasileiras é o de que sucumbam ao mesmo mal que se quer combater. No dia em que a corporação militar tornar-se porosa à penetração do narcotráfico, a profecia da ‘colombianização’ do Brasil começará a se cumprir.’
A Folha parece desconhecer que os principais suspeitos do roubo dos dez fuzis e uma pistola são um sargento e um cabo, e que nos roubos anteriores de armas outros militares estiveram implicados.
Tremendo lero-lero
Há militares ou ex-militares – dá no mesmo – planejando, operando ou comandando as diferentes facções do crime organizado. Principalmente no Rio de Janeiro. Mapas e esquemas recentemente apreendidos e divulgados pela imprensa revelam a presença de experts militares nos confrontos pela conquista de favelas.
A diabólica exploração de civis em manifestações contra todas as tentativas de manter o Estado de Direito nas favelas está nos manuais de guerrilha que qualquer pára-quedista sabe de cor.
É muito cômodo discorrer sobre os riscos de contaminar as Forças Armadas com os vírus do narcotráfico num moderno edifício na Alameda Barão de Limeira, São Paulo, como se tratasse de algo remoto e intangível. O contágio já existe e em larga escala. O Rio é uma cidade aberta, naturalmente permeável e permeada, ao contrário da Paulicéia onde a periferia não é figura de retórica, mas realidade concreta.
A tal porosidade funciona no Rio em todos os sentidos, é vertical e horizontal, não respeita classes sociais ou segmentos profissionais já que o narcotráfico e o narcoconsumo fazem parte do mesmo processo e têm idênticos interesses.
A segunda parte do editorial é ainda mais lamentável porque deixa de lado o ideário escoteiro tão apropriado para uma tarde de domingo e emaranha-se num erro grosseiro e lamentável que os leitores certamente repetirão ao longo dos próximos dias:
‘(…) Uma proposta a considerar com seriedade seria a de criar uma força federal ágil, moderna e eficiente especializada em intervenções circunscritas. Ela atuaria justamente em casos de ameaça da ordem pública. (…) De caráter militar, embora subordinada ao Ministério da Justiça, uma corporação deste tipo serviria…’ etc. e tal.
Sr. Editorialista, não leve a mal a gozação, mas vosmecê está chovendo no molhado. Gastou o precioso espaço do seu jornal na mais nobre página da edição para escrever um tremendo lero-lero. Essa força especial já existe, chama-se Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), foi criada exatamente com esta função, está subordinada ao Ministério da Justiça e já foi utilizada no Espírito Santo.
Velha e vil
A questão central gira exatamente em torno desta FNSP cuja existência é solenemente ignorada pela Folha: por que não foi usada? Qual o atarantado conselheiro de plantão junto ao Exmo. Sr. Presidente da República que autorizou a utilização do Exército num morro simbólico como o da Providência, atrás do antigo Ministério da Guerra, hoje sede do Comando Militar do Leste, em pleno centro antigo?
O território da bobagem em matéria de segurança pública na segunda maior cidade brasileira não pertence apenas aos paulistas. Na matéria de capa da última edição de CartaCapital, um jornalista carioca (ou naturalizado) tomado pela ira sagrada ideológica afirmou que o desvio dos militares para o enfrentamento com os narcotraficantes foi aberto ‘por volta de 1994, estimulado pelo governo Fernando Henrique Cardoso’ (‘O veneno do cascavel’, pág. 21). Em 1994, o presidente era Itamar Franco.
A capa ‘Mãos ao alto, favela’ é um exemplo da perversidade do bom-mocismo pseudo-esquerdista, escárnio à esmagadora maioria dos cariocas inclusive àqueles que nas favelas são obrigados pelos narcoterroristas a participar de ‘protestos’ contra a ‘intimidação’ militar. Chama a atenção que o protesto de CartaCapital contra as tropas nas favelas não cogita a existência de um comandante supremo das Forças Armadas, que é o presidente da República, quem afinal determinou — ou pelo menos autorizou — a intervenção. Ler a matéria dá a impressão de que tudo não passou de uma ação isolada do Exército.
A ‘colombianização’ das grandes cidades brasileiras já aconteceu e a imprensa faz parte do processo. Sobretudo quando exuma o arsenal retórico da Guerra Fria para politizar a tragédia urbana brasileira.
Nossa mídia às vezes parece envelhecida, às vezes mostra-se envilecida. Quase nunca está disposta a revelar a extensão da ‘colômbia’ tupiniquim. O último jornalista que tentou foi o repórter Tim Lopes. Ele não se fingia de escoteiro, nem assinava manifestos. Ia atrás dos fatos. Não voltou.
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