Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A confissão à luz da análise do discurso

Depois de assistir ao Programa do Jô de quarta-feira (26/9), resolvi tomar partido do deputado José Dirceu. Acho que não está certo o que o programa está fazendo com o PT, com o governo do presidente Lula e com o deputado e ex-ministro José Dirceu, expondo de modo negativo e unilateral toda a crise política, e não discutindo as causas essenciais da crise, ou seja, a disputa política, ideológica e eleitoral que cada vez mais assume a orientação central das disputas. Mas esta é outra conversa. Vamos ao ponto em questão, a análise lingüística e discursiva da citação feita no programa de quarta-feira, amplamente explorada na televisão, e que partiu da seguinte declaração, não sei se exatamente essa, mas nesses termos:


Deputado José Dirceu: ‘Estou cada vez mais convencido de minha inocência’.


O apresentador se equivocou ao deixar transparecer que essa dúvida do deputado José Dirceu se refere ao episódio dos empréstimos de Marcos Valério, de tecnologia criada pelo PSDB, usados irregularmente por Delúbio Soares para quitar dívidas de campanha de vários deputados e alguns partidos.


A culpa e a responsabilidade que o deputado José Dirceu examina, em sua autocrítica, é se ele poderia sido o culpado por esse esquema, mesmo sem ter participado dele, justamente pelo fato de que Jô e as jornalistas alegaram, de que Dirceu seria o ‘comandante’ do PT. Acredite Jô Soares, isto é um sinal de humildade e de honestidade de José Dirceu, e não uma confissão de culpa. Ele mesmo questionou sua responsabilidade, colocou-a em dúvida, e disse que a assumiria, se tivesse alguma culpa direta naqueles fatos. Mas, depois de acompanhar todos os acontecimentos, de ter lido dezenas de vezes os depoimentos, de ter refletido e observado a reação da mídia, do meio político e da sociedade, ele de fato assumiu certa responsabilidade, que nada tem a ver com a utilização de caixa 2 pelo PT, mas, sim, diz respeito à responsabilidade anterior, na época em que ele presidiu o partido e, em conjunto com todas as lideranças e instâncias do partido, criou as estratégias de governo e de alianças políticas.


Convicção crescente


Porém, diante do gigantesco peso que recaiu sobre ele, o deputado José Dirceu colocou a si mesmo em dúvida. Nessa declaração, especificamente, a marcação do enunciado é uma afirmativa de que ele, primeiro, se colocou eqüidistante do cenário, depois, fez e está fazendo a sua avaliação, e agora, considerando melhor os fatos, está se convencendo de que não cabe a ele assumir essa enorme carga perante a mídia, o meio político e a sociedade. Conhecendo melhor os fatos, que ele também desconhecia, pôde julgar melhor a sua participação no episódio que envolveu Roberto Jefferson, Delúbio Soares e Marcos Valério. Pois só então pôde medi-los, compará-los e contrapor suas decisões e as conseqüências que elas tiveram ou não tiveram.


Portanto, de fato o apresentador tem razão, mas apenas em metade da idéia. Na outra metade e no resultado final a conclusão dele está errada, sinto dizer. Como pesquisador de análise de discurso e lingüística, ainda que não seja um grande especialista, tenho conhecimentos suficientes para afirmar que, quando alguém diz estar acreditando cada vez mais em sua inocência, isso estabelece uma correspondência direta com o que a gente chama nessas disciplinas de ‘pressuposto’. Mas o pressuposto aqui não é necessariamente a assunção de culpa. Se considerarmos então o contexto mais amplo dessas ‘situações produtivas’, das ‘enunciações’ transmitidas, pode-se afirmar que de modo algum o conteúdo semântico de ‘antes não estar convencido de sua inocência’ dialoga com as irregularidades cometidas no PT, após a sua saída da diretoria.


Mas dialoga com o fortalecimento de sua convicção crescente, de que realmente não deveria ser apontado como responsável por esses acontecimentos. E realmente essa progressão discursiva, indicada pelo uso de ‘cada vez mais’, indica estarem, o avanço das investigações e das confrontações políticas em que o deputado está se envolvendo, nas formalidades cumpridas em sua defesa, fortalecendo essa convicção. Ou seja, mesmo se sentido um pouco culpado, ele esclareceu para si mesmo a sua responsabilidade, e nesse exame cuidou de ver se existia uma relação lógica ou necessária entre as suas gestões anteriores no partido e a atitude que Delúbio Soares tomou. Devemos nos ater aos fatos, não é mesmo? E é isso que os fatos indicam, independentemente de nossos desejos ou do que se gostaria de acreditar. Quando alguém não se conforma com a materialidade dos fatos, fazer o quê?


Nos limites da normalidade


Por isso acho que Jô, pela responsabilidade, pela imagem, de tantos anos conversando com políticos, em momentos importantes, pela grande habilidade comunicacional, representatividade e importância para a cultura brasileira, deve esse esclarecimento ao público: o conteúdo semântico da dúvida do ex-ministro naquela frase não é o que o apresentador e as jornalistas indicaram. Refere-se justamente ao passado de José Dirceu e às gestões dele no partido. Ele ponderou, para saber se tinham conexão com os fatos atuais. E concluiu (‘está concluindo cada vez mais’) que não – após estudar os fatos e considerar todas as hipóteses, durante um bom tempo.


Essa explicação deveria ser dada para confirmar o espírito democrático do apresentador, para não prejudicar José Dirceu, que está sendo injustamente perseguido, e para não prejudicar a democracia brasileira, patrimônio coletivo do Brasil. Há muita coisa em jogo neste momento, e somente o processo democrático pode equacionar adequadamente a enorme complexidade dos desafios do país.


O fato é que o deputado José Dirceu precisava de mais dados para tirar suas próprias conclusões, e que ele mesmo não se inocentou antes da hora. Além disso, José Dirceu está assumindo, sim, sua parcela de culpa, só que ela não diz respeito às atitudes de irregularidades partidárias. Ele se atribui culpa, e a estende a todas as lideranças do PT, porque reconhece outros erros, de planejamento estratégico, na formulação dos projetos e programas partidários, que nada têm a ver com Marcos Valério e Delúbio Soares. Mas não são erros de ilícitos, são erros comuns de gestão, em toda e qualquer instituição. Não estão além dos limites da normalidade. É isso que ele tem dito.


Conflito aberto


Mudar esses sentidos seria manipular de modo malicioso as informações. No episódio em questão, A postura dele é totalmente oposta à proximidade com os fatos. É o contrário. José Dirceu diz que lamenta não ter participado mais da vida do partido, depois de ter ido para o governo, pois talvez pudesse ter evitado que o episódio Marcos Valério e Delúbio Soares acontecesse. E, contrariando o que o programa tem dito, ele está sim dando todas as explicações à sociedade, só não vê quem não quer, ou quem se recusa a ver o que é óbvio. Mas não se pode obrigá-lo a ir ao Programa do Jô, nem usar a exposição agressiva contra ele para fazer barganha com a decisão tomada livremente.


Agora, Jô Soares é um homem experiente em seu trabalho. Não pode alegar ingenuidade diante do conflito político e de interesses que se estabeleceu entre o governo de bases populares do presidente Lula e as forças políticas ligadas às classes sociais mais privilegiadas. Ainda mais diante da sucessão presidencial de 2006, que tinha o PT como partido imbatível, antes que a crise política real passasse a ser explorada de modo astucioso pelos opositores do governo. E é nesse ponto que o deputado José Dirceu diz que está sofrendo uma clara perseguição política, justamente por ter sido o principal coordenador das políticas de governo.


Ademais, existe um conflito de interesses aberto entre a Rede Globo e José Dirceu. Este acusou veículos da mídia de estarem se comportando neste momento da vida nacional como verdadeiros partidos políticos, em disputa aberta pelo poder, portanto, sem o necessário distanciamento e a isenção que devem orientar o trabalho de comunicação social. Eu e provavelmente milhões de pessoas endossam totalmente essa visão. A Rede Globo está se envolvendo demais em política partidária, no caso, tomando partido ideológico, como se fosse uma espécie de tutora auto-proclamada da sociedade brasileira.


Autocrítica e recuo


O papel dela não deve ser este. Na semana passada, o artigo de Marilena Chaui explicou muito bem esse comportamento atual da mídia, querendo obrigá-la a falar ou usando a imagem dela em suas matérias, para dizer que então nem era preciso escutá-la. Esse monólogo unilateral da mídia também está presente no Programa do Jô. A reunião das quartas-feiras é um tribunal de exceção, pois não há a presença equivalente do ponto de vista contrário ao que as debatedoras dizem. Por isso, a própria mediação adquire um tom tendencioso e até agressivo. Vira um bombardeio puro e simples, sem qualquer resposta. É um espetáculo deprimente do ponto de vista da democracia brasileira, e da luta que a sociedade brasileira precisou travar para vencer o autoritarismo e o arbítrio. O debate da crise precisa de uma orientação mais séria. Não pode obedecer à estrutura de um show de denúncias e acusações unilaterais.


Seria muita ingenuidade do deputado José Dirceu aceitar ir ao programa no calor desses acontecimentos. Primeiro, a linguagem de análise é puramente informativa, e não especializada (personalidades imparciais reconhecidas). Fica o dito pelo não dito. Depois, reina a campanha do ‘tem que ser cassado’, inclusive na emissora. As linhas editoriais hostis ao deputado têm sustentado o clima de que as denúncias são verdades comprovadas e incontestáveis, e que a imagem de José Dirceu deve ser obrigatoriamente maculada. Há uma orquestração de temas tentando incriminá-lo em alguma coisa. Terceiro, a contínua execração pública a priori e unilateral faz com que seja imprevisível a reação do auditório convidado. Qualquer manifestação mesmo isolada de algum ‘tucano’ paulistano já funcionaria como arapuca, como um endosso para o ‘tem que ser cassado’, para a condenação prévia.


E, acima de tudo, elevando bastante o nível, agora, acredito que o maior interesse tanto da parte do apresentador quanto da parte de José Dirceu seria o de oferecer um programa digno, à altura dos dois, que restabelecesse a justiça e a democracia. Por isso, mais uma vez, foram lamentáveis os comentários no programa de quarta-feira 28 de setembro de 2005. Faço votos de que a Rede Globo e o Programa do Jô, e ele próprio, saibam também fazer a sua autocrítica e recuar desses ataques injustificados.

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Pesquisador, São Carlos, SP