Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A construção do vocabulário da crise

Uma das conseqüências mais visíveis da prolongada crise política que o país vive é o aparecimento e a incorporação ao vocabulário cotidiano de uma série de novas palavras/expressões como mensalão, valerioduto, despesas [de campanha] não contabilizadas e, mais recentemente, a dança da pizza. E também a ‘recuperação’, pela grande mídia, de antigos conceitos, agora vestidos com nova significação, como populismo e coronelismo.

O aparecimento de novas palavras/expressões numa língua viva é, certamente, um importante fenômeno já estudado. Essas novas palavras/expressões só poderão ser compreendidas se o seu significado for buscado dentro dos contextos concretos em que surgiram e passaram a ser utilizadas.

Na verdade, elas são tentativas de expressar sinteticamente, de maneira simplificada, questões complexas, ambíguas e de interpretação múltipla e polêmica. Elas buscam reduzir um variado leque de significados a apenas um único ‘significado guarda-chuva’ facilmente assimilável. Uma espécie de rótulo.

No caso presente, o que chama a atenção é o enorme papel que elas jogam na disputa política. E, sobretudo, na disputa política que se dá através da grande mídia.

Perfeito para a TV

Exaustivamente repetidas na cobertura política tanto da mídia impressa como da eletrônica, essas palavras/expressões vão perdendo sua ambigüidade original pela associação continuada a apenas um conjunto de significados. É dessa forma que elas acabam incorporadas ao vocabulário cotidiano do cidadão comum.

Mas elas passam também a ser utilizadas, por exemplo, nos levantamentos de aferição da opinião pública – muitas vezes realizados por institutos controlados pela própria grande mídia – sobre a crise política. Esse movimento circular produz não só aferições falsas da opinião pública como induz o cidadão comum a uma percepção simplificada e muitas vezes equivocada do que realmente se passa.

Tomemos como exemplo a expressão ‘a dança da pizza’ que vem sendo utilizada indiscriminadamente pela mídia para se referir à manifestação corporal silenciosa da deputada Angela Guadagnin (PT-SP), flagrada pelas impiedosas lentes panópticas instaladas no plenário da Câmara dos Deputados, durante e após a votação que absolveu o deputado João Magno (PT-MG) na madrugada de 23 de março.

Os milhões de pizzaiolos brasileiros não devem estar satisfeitos com a associação que se faz entre a pizza e tudo o que é antiético, corrupto, desonesto, imoral, indevido e indecoroso.

Há controvérsias sobre de onde teria se originado a expressão ‘dança da pizza’. Alguns a atribuem à própria mídia, outros a um senador da oposição ao governo. De qualquer maneira, o inequívoco significado associado a ela pela grande mídia é de que a deputada Angela Guadagnin praticou/comemorou algo que é antiético, corrupto, desonesto, imoral, indevido e indecoroso.

A dança, visualmente perfeita para a linguagem televisiva – o amarelo cintilante do vestido da deputada contrastando com o fundo escuro e sóbrio do plenário – produziu a seqüência ideal de imagens para a repetição exaustiva nos telejornais e na tela dos computadores via internet.

Responsabilidade de mídia

Independente do julgamento que se possa fazer sobre a conveniência da manifestação corporal da deputada em plenário – a propósito da qual ela já se desculpou publicamente –, seria bom jornalismo rotular univocamente a ela e à absolvição de um deputado – qualquer deputado – por seus pares, em processo que tramitou em conformidade com as normas regimentais da Câmara dos Deputados? E atribuir a isso conteúdo antiético, corrupto, desonesto, imoral, indevido e indecoroso? Não haveria outra interpretação possível para o processo? Ou essa rotulação sem mais nem menos faz parte da disputa política e até mesmo partidária?

No clássico 1984, de George Orwell, a edição que estava sendo preparada do Dicionário da Novilíngua daria à língua a sua forma final. Não pela invenção de novas palavras, mas, sobretudo, pela destruição de palavras existentes. A língua seria reduzida à sua expressão mais simples.

Estudos sobre a difusão mundial da idéia de globalização no final do século passado, por exemplo, já apontaram para a ‘violência simbólica’ praticada pela introdução de conceitos como flexibilização, governabilidade, nova economia, fragmentação, tolerância zero e a desqualificação sistemática de outros como capitalismo, classe social, dominação, exploração, desigualdade, dentre outros.

O consultor Frank Luntz, do Partido Republicano, nos Estados Unidos, explicou publicamente a eficiência da substituição de palavras/expressões nas campanhas eleitorais e na sustentação da imagem positiva de governos. ‘Aquecimento global’ vira ‘mudança climática’, um ‘programa de desmatamento’ vira ‘florestas sustentáveis’, ‘privatizar’ vira ‘personalizar’, ‘invasão vira ‘guerra contra o terrorismo’ – e assim por diante.

As palavras/expressões definem e constituem o espaço público onde ocorre a disputa política. Elas expressam as relações sociais em conflito e em mudança.

Qual é a responsabilidade da mídia na construção de um vocabulário simplificado que rotula e reduz a complexidade multifacetada de questões a claros instrumentos de disputa política?

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)