De propagadores a protagonistas de escândalos. Acostumados à condição de vetor de notícias sensacionalistas, tabloides ingleses estão sendo acusados de instalar grampos ilegais, invadir a privacidade e contratar detetives para obter informações sigilosas. Na última semana, jornalistas foram presos e um dos mais tradicionais jornais britânicos, o News of the World, colocou o ponto final em seus 168 anos de história. De acordo com a Justiça, durante anos, funcionários do Sunday Times, The Sun e News of the World, jornais que pertencem ao grupo News International, do magnata da comunicação Rupert Murdoch, agiram de forma ilegal para conseguir informações.
Entre as mais de três mil vítimas das escutas ilegais, estão o ex-primeiro ministro britânico Gordon Brown, que classificou de “repugnante” os métodos utilizados pelos tabloides, famílias de soldados enviados ao Iraque e ao Afeganistão, de adolescentes seqüestrados e celebridades. As primeiras informações sobre a conduta inadequada dos tabloides veio à tona em 2006. Nesta época, tanto a polícia quanto o órgão de autorregulação da imprensa britânica, o Comitê de Queixas Contra a Imprensa (PCC, na sigla em inglês), decidiram encerrar as investigações. Com base em uma série de denúncias, em janeiro de 2011, a Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres, iniciou uma nova investigação. Quatro meses depois, o News of the World admitiu ter interceptado mensagens telefônicas.
Conduta criminosa
Foi a partir da investigação feita por um jornal concorrente do grupo de Murdoch, o Guardian, que o assunto ganhou contornos ainda mais graves. No início do mês, o News of the World foi acusado de atrapalhar as investigações do desaparecimento de uma adolescente com a invasão do correio de voz da garota. O escândalo respingou no primeiro-ministro David Cameron, que havia nomeado Andy Coulson, ex-editor do tabloide dominical, como porta-voz do governo. O jornalista chegou a ser preso, mas foi solto horas depois. Cameron prometeu acompanhar as investigações. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira [12/7] discutiu a crise que atinge os tabloides no Reino Unido.
Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o jornalista Silio Boccanera, correspondente brasileiro no exterior há mais de trinta anos. Silio atuou como enviado do Jornal do Brasil aos Estados Unidos e depois, pela Rede Globo, transferiu-se para a Europa. Baseado em Londres, além de colaborar ocasionalmente para o Observatório, faz dois programas regulares para a Globonews, o Sem Fronteiras e o Milênio. Em São Paulo, o programa contou com a presença do jornalista Rogério Simões, editor-executivo da revista Época. Simões foi diretor da BBC Brasil baseado em Londres, onde viveu por dez anos até 2011. Trabalhou ainda na Folha de S.Paulo, onde foi editor de Opinião e correspondente em Londres, e na revista Veja, entre outros veículos.
Em editorial, Dines comentou que o escândalo deve tornar-se ainda maior. “Ao fechar um jornal altamente lucrativo, seu dono, Rupert Murdoch, não está tentando parecer decente. Está, sim, tentando salvar os baluartes do seu império situados principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra”, explicou.
Para Dines, o caso precisa ser acompanhado porque coloca em jogo a imprensa livre: “Murdoch e seus asseclas são corsários, seqüestram a privacidade para vendê-la por centavos a milhões de leitores que não sabem como estas intimidades foram devassadas. Acontece que Murdoch é o chefe de uma máfia política identificada com a extrema-direita que não se incomoda em degradar a imprensa, desde que esta degradação sirva para dar-lhe mais poder”. Dines ressaltou que se a mídia inglesa e americana fosse, de fato, autorregulada, o grupo de Murdoch não teria agido de forma ilegal por tanto tempo.
Império tentacular
A correspondente Lúcia Guimarães, baseada em Nova York, comentou as ramificações do império de Murdoch nos Estados Unidos. O poderoso grupo de comunicação começou a ser montado na Austrália quando Murdoch herdou o jornal do pai. A jornalista relembrou que o magnata australiano chegou à América nos anos 1970, dez anos após comprar o News of the World em Londres. “Ele começou comprando jornais americanos e depois comprou o estúdio 20th Century Fox”. Na década de 1980, já proprietário do New York Post, Murdoch naturalizou-se americano para comprar um canal de TV.
Depois, driblou a lei que impedia a propriedade de um jornal e um canal de radiodifusão em uma mesma cidade. Lúcia contou que, na seqüência, Murdoch comprou o Wall Street Journal e passou a moldá-lo à sua imagem: menos escrúpulo e mais agressividade. “A Fox News de Rupert Murdoch hoje tem o partido republicano no bolso e nós pagamos caro por isto. O preço é a campanha para convencer o público de que Barack Obama é um socialista antidemocrático porque propõe que todos tenham seguro-saúde”. Lúcia Guimarães comentou que Murdoch mantém “extremista de direita” na folha de pagamento e despreza o jornalismo.
No debate ao vivo, Silio Boccanera criticou a “cultura de tabloide” que se instalou no Reino Unido. O jornalista explicou que o que caracteriza um impresso como tabloide não é o tamanho do jornal, nem a periodicidade com que sai às ruas, e sim o espaço que dedica a escândalos. Enquanto o Sun é um “pecador diário”, o News of the World , por exemplo, só “peca” aos domingos. “É uma cultura do escândalo, da celebridade, da mulher sem roupa, da fofoca, da invasão da vida pessoal. E vende muito”, lamentou o jornalista. Para Boccanera, a qualidade do jornalismo produzido pelos tabloides é inexistente.
Abuso de poder
Há no Reino Unido um grande culto à celebridade e este traço cultural, de acordo com a avaliação de Boccanera, acaba estimulando a atuação dos tabloides. Dines perguntou como o londrino está avaliando esta “avalanche de esgoto”. O correspondente contou que a população percebeu que os tabloides “passaram do ponto” e não se restringiam a fofocas envolvendo o mundo das celebridades. Durante décadas, o público tolerarou os excessos dos tabloides, mas com estes escândalos percebeu que o grupo de Rupert Murdoch estava abusando do poder.
Em 2002, quando o jornal contratou um detetive para invadir a caixa-postal do telefone celular de Milly Dowler, uma adolescente seqüestrada, o jornal era editado por Rebekah Brooks, atualmente braço-direito de Murdoch no conglomerado de comunicação. Dines perguntou o porquê de Brooks estar sendo mantida no posto por Murdoch. Silio Boccanera contou que ela tem uma função fundamental para a preservação da imagem do sucessor de Murdoch, seu filho James. “A especulação maior tende a se concentrar no papel de pára-raios que está sendo atribuído a ela. Em outras palavras: ‘mantenham ela aí para que os ataques se concentrem nela’ e não passem para o óbvio, que é o filho do Murdoch, o herdeiro”.
Rogério Simões destacou o pano de fundo que existe por trás dos escândalos envolvendo os tabloides da Grã Bretanha: a estreita relação de Rupert Murdoch com a elite política e a crise da imprensa, expressa na queda de vendagem dos jornais. Simões explicou que todas as publicações vêm perdendo leitores e esta crise leva a uma competição intensa e exagerada. “Você entra em um certo desespero para conquistar leitores, e aí, o sensacionalismo de algumas publicações acaba aumentando”, sublinhou o jornalista. Por isso, na última década, o News of the World passou a usar de práticas criminosas para obter furos espetaculares. “É difícil imaginar que decisões desta envergadura e práticas complexas como o monitoramento do telefone de milhares de pessoas – pessoas importantíssimas no cenário político, cultural, pessoas da família real, assessores do príncipe William – pudessem ser feitas sem o conhecimento e orientação dos editores do jornal”, avaliou Simões.
O papel da concorrência
O jornalista ressaltou que tanto a polícia londrina quanto o PCC deram como encerradas as investigações sobre a conduta dos tabloides do grupo de Murdoch. Tempos depois, coube ao concorrenteGuardian a apuração dos desvios de conduta. “Neste episódio, quem tinha que ter averiguado, investigado, colocado pressão sobre o News of the World acabou não fazendo”, criticou o ex-diretor da BBC Brasil. Na avaliação de Simões, quem acabou “dando o golpe fatal” no News oh the World foi o poder econômico. Diante da indignação da população com a revelação de que o tabloide atrapalhara as investigações sobre o seqüestro da adolescente Milly Dowler, houve uma vertiginosa queda nos anúncios.
Dines comentou que a reação mais forte ficou a cargo do Guardian, mas a investigação mais aprofundada deveria ter sido promovida pelo PCC. Órgão pioneiro de autorregulação, o PCC inspirou a criação de comitês semelhantes em outros países. Para Dines, o nome do órgão é pomposo e democrático mas, na prática, o comitê não funciona. Simões explicou que este caso prejudicou o PCC e relembrou que o organismo tem a função de proteger a liberdade da imprensa inglesa. “A idéia de que a imprensa britânica tinha a capacidade de se autorregular e punir os abusos era uma idéia que os jornais britânicos defenderam muitos anos para proteger o setor de qualquer tipo de interferência de outras partes da sociedade ou de um controle por parte do governo ou do parlamento”.
A reação do premiê David Cameron à ineficiência do PCC foi imediata. Simões sublinhou que Cameron declarou no parlamento que o modelo do comitê precisa ser reavaliado. O premiê anunciou que pretende acabar com a comissão e substituí-la por um grupo formado por pessoas de notoriedade na sociedade. “Podemos estar vendo agora o fim da autorregulação da imprensa britânica, o fim deste modelo. E isto terá conseqüências para o futuro do setor”, advertiu Simões.
Quem regula a imprensa?
Silio Boccanera ponderou que, para “casos menores”, a comissão cumpre o seu papel, mas, diante dos escândalos, não mostrou “garras e dentes para morder”. O correspondente explicou que há regras de conduta na imprensa do Reino Unido. “Existe um código de ética geral, endossado pelo PCC, e faz parte do contrato dos jornais que, ao violar o código, violam um código comum a todos”, afirmou. O jornalista destacou que a comissão não tem o poder de aplicar multas, apenas obriga os veículos a publicar uma retratação em casos de conduta inadequada. Enquanto a maioria dos países adota uma agência para controlar e regular a mídia eletrônica, no Reino Unido, a imprensa escrita adota a autorregulação.
Um telespectador perguntou se a imprensa brasileira corre o risco de tornar-se sensacionalista e antiética como os tabloides londrinos. “Este potencial sempre existe. Não podemos subestimar a capacidade de ‘mergulho no lixo’ da imprensa de qualquer país. O que eu temo é que o culto à celebridade, a necessidade de dar as intrigas de bastidores – e isto é um fenômeno que cresce – estimule este tipo de coisa. Nós temos jornais de qualidade e de baixo nível também. O potencial problema é que cresça este culto à celebridade e isto leve a uma mediocrização da imprensa e que leve a truques e ações criminosas como estas”, avaliou Silio Boccanera.
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Praga mundial
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 601, exibido em 12/7/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
É o maior escândalo jornalístico da era moderna e promete tornar-se ainda maior. A bolha que explodiu na semana passada está sendo alimentada há quase dez anos e não se resume à sórdida atuação do tabloide dominical, News of the World.
Ao fechar um jornal altamente lucrativo, seu dono, Rupert Murdoch, não está tentando parecer decente. Está, sim, tentando salvar os baluartes do seu império situados principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Embora se desenrole em outro hemisfério, a milhares de quilômetros de distância, este mórbido caso com seus funestos protagonistas precisa ser acompanhado pelo cidadão brasileiro porque está em jogo a defesa de uma das instituições mais importantes para o bem-estar da humanidade: a imprensa livre.
Murdoch e seus asseclas são corsários, sequestram a privacidade para vendê-la por centavos a milhões de leitores que não sabem como estas intimidades foram devassadas. Acontece que Murdoch é o chefe de uma máfia política identificada com a extrema-direita que não se incomoda em degradar a imprensa, desde que esta degradação sirva para dar-lhe mais poder.
Se as imprensas inglesa e americana fossem efetivamente autorreguladas, os jornais de Murdoch e a Fox News não agiriam com tanta desenvoltura por tanto tempo. Se a concorrência fosse lá seriamente acompanhada, Murdoch não poderia ser dono de jornais e TV nas mesmas cidades.
O caso Murdoch estourou na Inglaterra, já chegou aos Estados Unidos, mas interessa vitalmente aos nossos jornalistas e, principalmente, aos nossos leitores e telespectadores.
É bom registrar que as mazelas de nosso jornalismo são insignificantes comparadas com as torpezas produzidas por Murdoch. Mas, se não tomarmos cuidado, podemos rapidamente chegar lá. Convém não esquecer que a imprensa amarela é uma praga mundial que aqui chama-se imprensa marrom.