Em um curto e precioso artigo publicado neste Observatório, Alberto Dines sugere que a avalanche de denúncias provoca na mídia uma confusão entre memória e esquecimento. Há bem pouco tempo publiquei na internet o artigo intitulado ‘Polícia do espetáculo‘, que agora retomo em razão da proliferação de operações da Polícia Federal e da furiosa cobertura que a mídia vem fazendo de cada novo espetáculo.
A polícia é um instrumento do Estado de Direito e não deve, de forma alguma, colocá-lo em risco. Ao se expor demasiadamente na mídia, o policial compromete seriamente as finalidades da instituição a que pertence (dentre as quais se destaca a investigação e fornecimento das informações relevantes para o Ministério Público ajuizar, ou não, uma ação criminal). Mais que isto, os policiais podem confundir sua missão institucional com um show televisivo. Um show bem ao gosto das TVs, que se distinguem dos outros meios de comunicação pela necessidade constante de entreter a audiência de maneira a valorizar os anúncios dos intervalos. E, se não me engano, os comerciais constituem a principal fonte de renda das companhias televisivas.
O vazamento de informações policiais é natural e até desejável. Os jornalistas não têm o dom da ubiqüidade e, portanto, não estão em condições de saber o que ocorre em todos os lugares o tempo todo. Nesse sentido, os policiais cumprem uma relevante função ao alimentar os jornalistas de informações para que estes possam, preservando o sigilo de suas fontes, revelar ao público assuntos de interesse geral. A publicidade é um princípio da administração pública, o sigilo das fontes é um pilar da imprensa livre e o direito à informação um corolário da democracia.
O valor econômico da informação
Mas uma coisa é o policial alimentar o jornalista de informações; outra é uma única empresa jornalística colocar alimentos na mesa do policial. O agente policial pode ser fonte legítima dos jornalistas, mas se recebe ou exige propinas para informar exclusivamente uma empresa me parece que está a cometer um abuso. Quando uma única emissora de TV tem acesso a informações e é a única a fazer a cobertura de um fato policial relevante, há um indício claro de que o show pode estar se transformando na principal atividade e fonte de renda de alguns policiais.
Na qualidade de agentes públicos de segurança, esses mesmos policiais são remunerados pela comunidade. E a comunidade tem todo direito de exigir deles que se comportem menos como artistas e mais como profissionais. Mais que isto, tem até o direito de exigir que eles sejam punidos e expulsos de suas corporações caso seus desvios se tornem uma regra contra o rigor da lei.
A competição entre as empresas jornalísticas e entre os jornalistas também é natural e desejável. No entanto, quando uma companhia de TV alimenta o policial em troca de informações privilegiadas, a competição deixa de ser saudável. Se o abuso do poder econômico se torna a regra, a produção de distorções é inevitável. A compra de informações cria a impressão de que o valor econômico da informação está acima da liberdade de imprensa, da competição jornalística, do direito à informação e, principalmente, da impossibilidade do servidor público se apropriar em benefício próprio de algo que a rigor pertence à comunidade. Quando vale tudo para manter a audiência, a imprensa se torna sua principal inimiga. Mais que isto, se a verdadeira fonte de uma crise ontológica pode contaminar toda sociedade.
TV nunca lembra
Durante a guerra fria e o regime militar, não havia espaço para crises ontológicas na imprensa. Os jornalistas simpáticos à URSS e adeptos da democracia eram censurados, mas sabiam muito bem quais valores defender e procuravam contornar a censura com criatividade e audácia. Já os jornalistas simpáticos aos EUA e aos militares, também não descuidavam de impor sua particular visão de mundo porque, acima da informação e da liberdade de imprensa, havia o medo real ou imaginário do comunismo.
Com o fim da guerra fria e do regime militar, as coisas ficaram mais complicadas. Como já não tinham um grande inimigo, os jornalistas passaram a procurar e denunciar furiosamente alguns pequenos inimigos e depois outros, e depois outros, e depois outros mais… Querendo ou não, os jornalistas deram a todos os inimigos da sociedade a mesma oportunidade de esquecimento. A mesma possibilidade de se esconderem entre as vítimas e os verdadeiros criminosos denunciados pela imprensa.
Um político corrupto é denunciado, nega tudo e ressurge nas urnas porque foi esquecido pela imprensa. Um investidor corrupto é denunciado e preso, desaparece e, miraculosamente, ressurge de maneira triunfal como protagonista de outro golpe multimilionário para delírio dos jornalões e revistinhas. O presidente de Tribunal mafioso é preso e o Judiciário deixa a maioria de suas acusações prescreverem porque a TV, que tudo registra, nunca lembra de tentar mostrar quem eram seus parceiros.
A ‘engenharia do consenso’
Em razão da crise ontológica por que está passando, a finalidade pública da imprensa (possibilitar ao cidadão o pleno exercício de sua cidadania) está se deteriorando. E assim, a memória se transforma rapidamente no seu oposto. Impossível não citar as palavras do José Arbex Jr, que reforçam as do Alberto Dines:
‘…exibir as imagens à exaustão ou narrar fatos em profusão sobre uma determinada região ou sobre personagens da vida política, econômica e cultural podem contribuir mais para ocultar do que para explicar, mais para produzir esquecimento do que para recuperar ou elaborar a memória sobre determinado tema…’ (Showrnalismo, Casa Amarela, 4ª edição)
O mais grave é que, em razão deste fenômeno, o próprio regime político pode estar correndo riscos (se é que já não foi transformado). No século 4 AC, o filósofo Aristóteles defendia a tese de que todo regime político pode degenerar em seu oposto (mesmo que conserve o antigo nome). A crítica da imprensa não é uma tarefa simples, principalmente quando a mesma encontra a política. O próprio Arbex já disse que:
‘O maior problema, para o pensamento crítico, é tornar visível não apenas o oculto, censurado ou ausente como texto ou imagem, mas o que as tecnologias da informação tornam aparentemente visível por um processo de exposição extrema que, fingindo tudo mostrar, de fato nada revela. A ‘engenharia do consenso’ opera com armas muito mais sutis e eficazes do que a censura bruta: sua matéria-prima são nossos próprios preconceitos e convicções, assim como nosso temor de enfrentar a instabilidade em um mundo cada vez mais complexo.’ (Showrnalismo, Casa Amarela, 4ª edição)
Perguntas incômodas
Levando em conta a tese aristotélica, as palavras dos jornalistas Alberto Dines e José Arbex, bem como os fenômenos aqui modestamente expostos, é impossível não discutir os fundamentos do próprio regime político em que tem atuado a imprensa e a ‘polícia do espetáculo’. O rigor nos obriga a fazer perguntas que são verdadeiramente inquietantes.
Sob a aparente normalidade democrática, a verdadeira natureza do regime político em que vivemos está a exigir uma redefinição a cada nova denúncia aparentemente inútil feita com base em informações compradas. Se compararmos a sociedade a um iceberg, podemos dizer que a mídia está a mostrar apenas uma pequena parcela do mesmo. As empresas jornalísticas e os profissionais da informação se engalfinham para expor o que está acima da linha d’água e assim mesmo escondem parte do que mostram (na medida em que colaboram para o esquecimento coletivo em razão dos excessos que praticam).
A crítica das relações entre mídia e política, entretanto, raramente é feita em público. Não basta discutir o que foi mostrado pela mídia e como (algo que o OI tem feito com bastante empenho). É necessário expor o que a mídia está tentando esconder. É vital tentar revelar os processos que a imprensa utiliza, consciente e inconscientemente, para preservar a ocultação da maior parte do iceberg que se encontra sob a água.
A crise ontológica da imprensa, a transformação da atividade policial em show, a falta de memória da população, a impunidade forjada paradoxalmente pela exposição na mídia, a transformação de informações policiais em mercadoria, são sintomas de degeneração da democracia ou são as verdadeiras características do regime em que vivemos? Afinal de contas, quais são as semelhanças e as diferenças entre o que chamamos democracia e o regime político ateniense sob Péricles? Em que medida a imprensa cumpre uma função social relevante? Até que ponto a imprensa tem sido artífice da perversão do regime político?
Deixo ao leitor a tarefa de responder estas perguntas.
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Advogado, Osasco, SP