Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cupidez dos números

Pesquisas. Desconfio delas. Primeiro por causa da ilusória cientificidade que as norteiam.Depois, pela própria relatividade dos números, que diferentemente das cartas, mentem, e como! Pior ainda é o desserviço que costumam prestar na medida em que geralmente servem para escamotear conflitos entre a realidade e as estatísticas, que não mostram o que muitas vezes é facilmente perceptível a olho nu. Em suma, pelo seu uso político, tendem a ser muito mais um instrumento dissimulatório e manipulador do que esclarecedor. Como, aliás, sugere a sonora vaia endereçada ao presidente por ocasião da solenidade de abertura do Pan, contrastando com os  60% de aprovação apontados nas tais pesquisas. 

Os exemplos dessa relatividade dos números são fartos e comprováveis pela mais simples das metodologias.Como ir ao supermercado e comparar os preços atuais com os de um ano atrás, para não ir muito longe. Poderia relacionar pelo menos uma dúzia de itens de primeira necessidade que se não dobraram de preço, estão perto disso. Só nesse último mês, carne, leite e seus derivados subiram até 30%. Está certo, é o problema da sazonalidade, mas por que isso não aparece na inflação? Afinal, não se trata de coisa pouca. Não sou economista, não sei se algum tipo de expurgo está sendo aplicado, mas mesmo assim a verdade é que tudo tem subido bem acima dos índices inflacionários nos últimos anos, sem que o rendimento das pessoas acompanhe. No caso dos aposentados, a situação vem piorando de forma ainda dramática, com a alta exorbitante dos remédios e planos de saúde.

Em tempos de otimismo oficial, essa perda contínua de poder aquisitivo da população  quase não aparece ou é subestimada, enfatizando-se o ganho artificial das camadas mais pobres, graças aos programas assistencialistas. O salário mínimo teve uma pequena recuperação nos últimos anos, mas ainda está longe de compensar o achatamento remanescente dos tempos da inflação galopante.

Crise de duas décadas

Lula foi eleito para acabar com uma crise de duas décadas, que levou uma geração inteira para o andar de baixo, mas tem se contentado em manter o barco na rota traçado por seu antecessor, preservando uma política econômica ortodoxa, cuja maior virtude é a continuidade do que o economista Márcio Pochmann já em 2000 chamava de ciclo da jabuticaba, ou seja, muita árvore para pouca fruta.

Não há demérito nisso. Mudanças estruturais como as que o país carece não são exequíveis da noite para o dia e Lula tratou logo de arquivar o velho discurso socialista, de demonização do mercado, aferrando-se a uma política monetária ainda mais rígida que a de FHC. O que, aliado a uma conjuntura internacional favorável, vem mantendo as coisas nos eixos. Mas, propaganda à parte, ainda estamos longe de justificar o ufanismo que nossas esquerdas delirantes exibem. É o que indica levantamentos de insuspeitos organismos internacionais, que colocam o ambiente econômico brasileiro entre os mais fechados e travados do mundo. Sem falar dos números ainda modestos em relação a outros países emergentes, com uma renda per capita de US$ 3 mil, metade da população vivendo na pobreza e sem avanços significativos nas áreas de educação, saúde e saneamento básico. Isto para um PIB que já foi o oitavo mas há quase uma década se mantém como 13° do mundo.

Não é segredo para ninguém que se por  um lado o país conta com um bom parque industrial, crescentes safras agrícolas, com instituições democráticas consolidadas e liberdade de imprensa. Por outro lado, há entraves que o condenam a patinar no atraso e na desigualdade. Mesmo no âmbito da economia, ponto alto do lulismo, a alta carga tributária, o protecionismo autofágico, o tormento burocrático e a infra-estrutura deficiente e cara são impedimentos que afetam diretamente a competitividade de nossos produtos, provavelmente bem mais que a própria defasagem cambial. No ambiente doméstico, o protelamento das reformas estruturais, ao lado do intacto cenário de corrupção, violência e impunidade,estão longe de corresponder ao oba-oba da propaganda oficial. Que na semana passada, por sinal, sofreu duro revés com a divulgação de um relatório por parte do Banco Mundial, dando conta do recrudescimento da corrupção em nosso país.

Faca de dois gumes

Pois é. Pesquisas são assim mesmo, uma faca de dois gumes. Razão pela qual convém encará-las com saudável ceticismo. Como é o caso deste levantamento do Doxa, do grupo Carta Capital, que comprovaria a tendenciosidade da cobertura política de nossa grande imprensa. Tese que ganhou força nas últimas eleições presidenciais, com base nas sucessivas denúncias dos escândalos que envolveram o PT no primeiro mandato de Lula, que mesmo assim acabou consagrado nas urnas. Prova de que a imprensa não faz a cabeça de ninguém ou da falácia do tal complô midiático? Seja como for, o grosso da opinião pública parece estar pouco se lixando para as elocubrações de nossa errática esquerda. Pelo menos não me consta que Veja e os jornalões estejam vendendo menos. Ao contrário, com o boom imobiliário, vê-se que anunciantes é que não tem faltado.

Bom mesmo – e  nisto acho que todos concordam – seria se tudo isso se refletisse num desempenho melhor, algo que inegavelmente tem sido sacrificado pela cupidez dos números.