Na edição de O Estado de S. Paulo de quinta-feira (10/4) veio uma dessas notas que saem por força de decisão judicial. Estava bem na base da página A4. | |
O texto, em corpo acanhado, não se pode dizer que fosse convidativo. O título parecia uma designação de caixa de arquivo morto: ‘Publicação de sentença’. Não dizia muito sobre o conteúdo da nota, mas pelo menos identificava bem a origem: uma sentença, oras, bem se via. A nota estabelecia uma retificação, por ordem do Judiciário, de uma reportagem publicada há quase dez anos.
Para quem dominasse o básico do jargão jurídico, cumpria a função a que se destinava. De resto, nada a comentar quanto a isso. E mais: declaro que, a meu juízo, a nota atendeu à finalidade de que foi incumbida pelo Judiciário. Esclareceu satisfatoriamente o que tinha a esclarecer, nada restando a acrescentar. Fora isso, o mérito do processo judicial não é objeto deste artigo, que não se ocupa de questionar decisões judiciais e seu cumprimento. O que se vai discutir aqui são aspectos gráficos desse tipo de publicação que, vez por outra, aparece abruptamente em jornais e revistas. | Clique para ampliar |
O ponto que mais me chama a atenção é o descompasso de que essas publicações são um sintoma: o descompasso entre o idioma do Poder Judiciário e o idioma da imprensa. Às vezes, parecem tão distantes um do outro quanto o latim do português. O descompasso idiomático vale para o palavreado, por certo, mas vale principalmente para a diagramação. É como se a Justiça não houvesse despertado para a edição e para o design gráfico. Ou, digamos, é como se a Justiça desprezasse a edição e a diagramação como vias de acesso à clareza. E é justamente em torno disso que pretendo, digamos, divagar.
Do dever de ler…
O mundo jurídico não depende de seduzir leitores, já se sabe. Ele se baseia na premissa de que todo mundo conhece a lei, pois a ninguém é dada a prerrogativa de alegar desconhecê-la. Naturalmente, as manifestações do Judiciário tomam por base o mesmo princípio. Elas se farão conhecidas porque se farão valer. Sua eficácia sobre a realidade impõe que delas saibam, e saibam muito bem, todos os atingidos, pois elas modificam o mundo dos fatos e afetam a vida dos humanos sobre a Terra. É por isso que a lei e a aplicação da lei não podem ser desconhecidas por ninguém. A lei e a Justiça não precisam solicitar leituras. Ai de quem ignorá-las, isto sim.
Não ignorá-las, contudo, não significa compreendê-las plenamente. A propósito, não é sempre que os termos da Justiça se fazem entender. A língua dos juízes não é a língua das ruas. Nem poderia ser, é bom que se avise desde logo. Não se concebe o voto de um togado em termos vulgares – se assim fosse, a manifestação da Justiça perderia em precisão, não apenas em pompa.
A operação do sistema de Justiça requer uma linguagem que busque, mais do que a elegância, a precisão técnica e doutrinária, assim como requer a especialização. Isso não se discute de modo algum. Mesmo assim, seria lícito perguntar: será que, sem incorrer em gírias e coloquialismos excessivos, a língua da Justiça não deveria buscar a compreensão dos mortais comuns?
Digamos que, embora não pareça, ela busque exatamente isso. Digamos, ainda mais, que não está em questão, aqui, o poder de síntese das sentenças. Não está em dúvida o didatismo das decisões judiciais. Apenas não posso deixar de constatar que os textos que a Justiça manda publicar nos jornais e nas revistas atestam que a edição e diagramação não figuram no rol das preocupações dos magistrados. Para eles, as palavras não devem fazer concessões ao arranjo visual, ao equilíbrio entre títulos, olhos, subtítulos e leads, à combinação das funções informativas de cada uma desses elementos da comunicação jornalística. Para eles, talvez, o linguajar do mundo jurídico não deve adotar como parâmetro os dispositivos discursivos do mundo jornalístico – e não se pode dizer que estejam errados. Não deixo, contudo, de registrar o contraste.
Lembro-me de quando começaram as transmissões de sessões do Supremo Tribunal Federal pela televisão. Era difícil decodificar aquelas falas. Hoje ainda é difícil, mas já não é tanto. O fosso entre o popular e o juridiquês diminuiu um pouco – e isso pode ter a ver com a TV Justiça. Não que, por meio dela, o povo tenha se habituado às tecnicalidades processuais e suas vênias. Desconfio que a transformação se deva a um efeito invertido: os ministros teriam aprendido mais que os telespectadores.
Explicando: os ministros teriam se dado conta, pelo feedback informal dos telespectadores, de que seu discurso era impenetrável. Daí, teriam começado a buscar mais clareza. O que não é mau: a justiça se realiza na clareza, dado que o que é obscuro convida à injustiça. Os magistrados, portanto, ao buscar realizar a justiça, tenderiam a buscar ser claros na língua daqueles a quem a justiça se destina.
… ao direito de compreender
A TV Justiça teria servido, então, menos para iniciar os comuns nas letras jurídicas e mais para quebrar o isolamento lingüístico em que o juiz se refugiava, talvez por inércia. Temos visto, nessa matéria, alguns sinais de mudança. Informalmente, na opinião de alguns membros do Judiciário, ensaia-se o que poderíamos chamar de uma discreta e gradual reforma idiomática. Mal comparando, seria como se a Justiça gestasse sem grandes alardes uma curiosa contrafação do Concílio Vaticano II – o tal que, no catolicismo dos anos 1960, revogou as missas católicas em latim e determinou que os padres adotassem os idiomas de suas comunidades. Mesmo quem não sabe da missa a metade, nem em latim nem em português, há de concordar que a Justiça se tece na língua e só por obra da língua. Por isso, a clareza é uma das virtudes de quem julga.
Os textos publicados em jornais e revistas por força de decisão judicial – uma sentença, um direito de resposta, uma retificação – interessam exatamente por isso, porque expõem o vínculo entre justiça e clareza. Ou o esmaecimento desse vínculo. Interessam também porque expõem a distância aparentemente intransponível entre a comunicação do jornalismo e a comunicação da Justiça. Mesmo quando comparecem a jornais e revistas, as sentenças judiciais se apresentam como se não precisassem de títulos, de olhos, de leads e de subtítulos. Por que será?
Enquanto um juiz pode se proteger na premissa de que todos terão de conhecer, por gosto ou por dever, o que a Justiça decidir, um jornalista vive assombrado pelo pesadelo de que, se ele não for lido, perderá seu posto. O juiz estabelece como ficarão as expectativas de direitos, como se configurarão as relações entre as pessoas. Ele não depende de ser entendido, mas de ser obedecido. Já o jornalista trabalha para tornar interessante o que é importante, buscando aproximar-se de seu público, aprender com seu modo de vida, com seus valores, com seus cacoetes lingüísticos. Ele depende de ser entendido e nunca pretende, nem pode pretender, ser obedecido.
São papéis por demais distintos, o do juiz e o do jornalista. Nenhum melhor ou mais digno que o outro. Apenas diferentes. Por isso é que o contraste fala tão alto quando blocos de textos judiciais entram no meio de dezenas de outros blocos jornalísticos. Os primeiros, auto-suficientes, bastam-se de palavras. Quem tiver juízo que os leia. Os segundos combinam textos e imagens editadas; são concebidos para cativar os olhos e a imaginação do público.
Quem acompanha as sessões do STF na TV Justiça tem visto que alguns ministros já se pautam pelo objetivo de dialogar, didaticamente, com o telespectador a partir do direito que ele, telespectador, tem: o direito de compreender os fundamentos da Justiça. Nos blocos de palavras publicados nos jornais o quadro é outro, como se eles levassem em conta apenas a obrigação do público de tomar conhecimento daquilo que a Justiça decidiu. Não há ali, ainda, a tentativa de se aproximar do leitor.
If you can’t read something
A Justiça quer ser lida? Ela quer ser compreendida? Ela quer falar a língua do povo?
São perguntas ainda em aberto. Sempre estarão em aberto, por mais que as coisas evoluam. Mas, em matéria de diagramação, que é o tema deste artigo, ainda estamos longe, muito longe das respostas.
O que é muito intrigante é que, em matéria de diagramação, o muito antigo – textos que desprezam o aspecto gráfico inteiramente – parece dialogar com o vanguardismo do design gráfico. Parece um paradoxo, mas vamos a isso.
Um dos maiores nomes do design gráfico da atualidade, Rudy VanderLans, destruía o convencionalismo em matéria de diagramação e, diante de estranhezas que suas inovações poderiam causar, poderia se apoiar na seguinte máxima: ‘If you can’t read something, never mind, it probably wasn’t written for you.’ (Se você não consegue ler alguma coisa, tudo bem, ela provavelmente não foi escrita para você.) Ou seja: uma página que pareça uma insuportável confusão aos olhos de uns pode fazer sentido cristalino para aquele a quem ela se dirige. Isso vale sobretudo para os tempos de grafites sobre os muros, de fanzines, de efeitos visuais eletrônicos a partir de sujeiras gráficas.
Outro nome quase mítico da tipografia contemporânea, David Carson, diretor da revista Ray Gun e que já desenvolveu projetos no Brasil, notabilizou-se por diagramações absolutamente ilegíveis. Lastreava-se no mesmo princípio: se você não pode ler, não se assuste, isso não é para você.
Seria curioso aplicar os mesmos princípios às diagramações ausentes de textos judiciais em jornais e revistas. É como se eles olhassem para a gente e dissessem: não fomos escritos para você e também não fomos paginados para você.
Mas será que é isso mesmo? Os estudos de David Carson, ali pelos anos 1980, com sua radicalidade atroz, tinham um ar de pós-artes gráficas. Pareciam empanturrados de tipologias diversas, acometidos de uma overdose de recursos visuais. Produziam páginas de embotamentos, páginas hiperpoluídas, travadas, sem saída. Por isso eram inacessíveis, intransponíveis. Estavam além da diagramação. Fugiam para o futuro em meio ao detrito visual. Desafiavam o público. Se você não consegue ler isto aqui, que fique aí, preso ao seu presente, que o futuro acontecerá sem você. Já os textos judiciais, sem nada de design, parecem anteriores a qualquer desenho de página. Perdem-se no passado. É como se ficassem na pré-história do leitor e não se preocupassem nem um pouco com isso.
A pergunta de Caetano Veloso – ‘Quem lê tanta notícia?’ – talvez pudesse se somar uma outra: ‘Quem lê essas sentenças?’
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007