Se o jornalista Sandro Vaia se espantou com a escassa dissidência à cruzada antimidiática do professor Gilson Caroni Filho (‘O vale-tudo contra o jornalismo‘), de minha parte o que me deixa, por assim dizer, com os quatro pneus arriados é a anuência tácita, a incondicionalidade, a aceitação bovina de rigorosamente tudo o que ele vem trombeteando aqui. Desconfio que nem o mestre se sinta confortável com tamanha unanimidade, sabendo-se da conotação pejorativa que Nelson Rodrigues legou à expressão. Enfim, como se diz na velha bota, se non é vero…
[Antes de prosseguir, sinto-me compelido a esclarecer duas ou três coisinhas, de ordem pessoal, mas que julgo necessárias até mesmo pela minha inolvidável condição de jornalista desconhecido. 1º) Não estou aqui atrás de projeção e muito menos de emprego, posto que larguei a profissão voluntariamente e me viro bem com o que faço. 2º) Não escrevo essas mal-traçadas no intuito de satisfazer a mórbida curiosidade de alguns interlocutores mais ranhetas, mesmo porque estou careca de saber das segundas intenções aí embutidas. Topei a parada mais por saudade da adrenalina e – por que não admitir – como um desafio pessoal, já que até recentemente sequer me interessava por política.Como jornalista, sempre militei no setor de esportes e só passei a dar palpites sobre política depois que descobri este Observatório – a princípio como diversão, hoje em dia quase um vício como o futebol me foi um dia. Ainda não sei se a troca foi vantajosa; por ora, a única certeza que tenho é que esses poucos meses como mero comentarista já me renderam mais desafetos que os meus quase 20 anos de jornal. 3º) Melhor ir logo aos finalmentes.]
Como dizia, por mais abalizados e bem-escritos que sejam os textos de Caroni, cheira mal a concordância compulsória e ostensiva que seus admiradores olimpicamente exibem, diante de suas reverberações monotemáticas, especialmente contra a Globo. Que para ele, embora não tenha peito para dizer abertamente, bem que poderia ter a mesma sorte da RCTV venezuelana. Pelo menos é o que se depreende da defesa ferrenha que faz da polêmica medida tomada por Hugo Chávez, não renovando a concessão da principal emissora do país, sob a alegação de a mesma ter conspirado contra ele em tempos idos. Uma prerrogativa efetivamente legal, já que prevista na Constituição do país, mas interpretada por Chávez à sua conveniência, dentro da regra de ouro dos ditadores – ou seja, aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.
Na medida que faz o mesmo conceito de nossa imprensa, a dedução é lógica: para o professor, a Globo, bem como os demais veículos de nossa imprensa oligárquica e conservadora, são inimigos que devem ser combatidos a ferro e fogo.
Espaço ilimitado
O grande embuste dessa dialética carola não se esgota no anacronismo, no fato de trafegar na contramão da História, abortada nos quatro cantos do mundo, a começar pela retaguarda intelectual que lhe garantia alguma respeitabilidade. ‘Antes gostávamos de dizer que a direita era estúpida, mas hoje em dia não conheço nada mais estúpido que a esquerda’, detonou o prêmio Nobel José Saramago, em recente palestra na Espanha.
Empulhação ainda maior é ignorar que o próprio Lula vem se encarregando de jogar a pá de cal no tradicional lero-lero das esquerdas. Como, aliás, bem observou outro escritor renomado, o peruano Mario Vargas Llosa, em sua recente visita ao país, enaltecendo Lula por ter optado por um socialismo moderno, à moda européia, calcado na economia de mercado, na abertura do país aos investimentos estrangeiros, de apoio e fortalecimento da iniciativa privada – em suma, o contrário do que Chávez vem fazendo na Venezuela e bem diferente dos preceitos do socialismo cavernal preconizado por nossas esquerdas. ‘Haja paradoxos nos tempos que vivemos: Lula, campeão do capitalismo para uma direita econômica brasileira que vê no antigo sindicalista a melhor defesa contra o `socialismo do século 21´ proposto por Chávez’, diverte-se Llosa.
E com o que se divertem nossas esquerdas orfãs de pai e mãe, além de textos chauvinistas como os de Caroni? Com discussões inócuas sobre o sexo dos anjos, tipo quem e quando se roubou mais, se sob FHC ou Lula; macaquear os arroubos oratórios do presidente; com as modorrentas diatribes político-partidárias catapultadas e devidamente pasteurizadas, via blogosfera.
Verdade seja dita: não sobra muita coisa. O que possivelmente explica essa obsessão em culpabilizar a mídia. Explica mas não justifica, pois além de tudo deixa transparecer a dificuldade de conviver com as ambigüidades dos novos tempos, de comunicação instantânea, que transforma entretenimento, diversão e militância em farinha do mesmo saco.
Com espaço ilimitado e horas de programação para preencher, haja matéria-prima para o liquidificador da mídia. Não é à toa que tantas coisas soem falsas, irrelevâncias sejam alçadas ao status de notícia, e ilustres desconhecidos tenham seus 15 minutos de fama.
‘Violência redentora’
Foi mal, desculpem. Como já disse, curto meu anonimato. Já o professor Caroni parece estar adorando os holofotes. E como não é bobo nem nada, vai bisando seu sambinha de uma nota só, sabendo que depois é só sair para o abraço. Festejado com a efusão de hooligans por seus fãs, ai de quem confrontá-lo. Sobrou até para o calejado Sandro Vaia – e imagino o que me espera, chumbo grosso com certeza.
O que nos remete à questão inicial, sobre as motivações dessa gente, cujo culto exagerado à personalidade, o comportamento político condicionado pela radicalização e organização partidária de fundo nacionalista, se encerre direitinho na definição que o historiador norte-americano Robert Paxton faz do fascismo, em seu livro sobre o tema. Segundo ele, o termo vem sendo indevidamente relacionado a qualquer grupo político alinhado mais à direita, e cujo verdadeiro enunciado corresponde a ‘uma forma de conduta marcada pela preocupação obsessiva com a humilhação e a decadência da comunidade na qual um partido com base popular, formado por militantes nacionalistas engajados, repudia as liberdades democráticas e as elites tradicionais, pregando ações por meio de violência redentora’.
Para se ver que, assim como as aparências, os rótulos também enganam.
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Jornalista, Santos, SP