Entre a manchete e a nota curta, o noticiário sobre o envolvimento de políticos com o crime organizado que tem no comando “empresários” dos jogos de azar leva o leitor atento a se perguntar como certos personagens do rodapé do noticiário policial acabam no alto das páginas dos jornais.
Por tudo que tem sido noticiado sobre o modus operandi do bicheiro conhecido carinhosamente entre seus parceiros de crime como “Carlinhos Cachoeira”, admira o fato de haver se estabelecido e prosperado tão rapidamente, alcançando tantas supostas cabeças coroadas da República, sem que a chamada grande imprensa se desse conta de sua existência.
Há um aspecto claramente rudimentar em tudo isso: o esquema é tão primário e deixa tantas pistas, que admira não ter sido descoberto pela própria imprensa antes dos vazamentos de gravações feitas pela Polícia Federal.
Uma exceção: o jornal O Popular, das Organizações Jaime Câmara, de Goiânia, vem acompanhando a crescente influência de Carlos Cachoeira na política regional desde 2005, e documentou a extensão de suas atividades até o Distrito Federal. Além disso, suas reportagens sobre corrupção e violência policial no estado de Goiás apresentaram muitos indícios de contaminação da política pela mistura entre criminosos e autoridades, a partir da revelação das atividades de um “esquadrão da morte” formado por policiais militares, com óbvio suporte de políticos e representantes da Justiça.
Sem segredo
Então, o problema da miopia estaria localizado principalmente naqueles veículos de circulação nacional, que só enxergam os problemas regionais quando eles passam a afetar o campo central da República.
Tanto mais grave, então, que a imprensa, naquilo que tem de mais representativo, não tenha sido capaz de detectar a extensão da influência alcançada por um chefete do crime organizado sobre tanta gente importante.
Na terça-feira (8/5), os jornais registram as suspeitas de negócios escusos comandados pelo bicheiro envolvendo os governadores do Distrito Federal, do Rio de Janeiro e de Goiás. Os três mandatários são personalidades de destaque nos três maiores partidos do país – PMDB, PT e PSDB.
A sequência do noticiário mostra o acelerado processo de metástase do esquema de Cachoeira sobre a política nacional e a longevidade das relações da construtora Delta – citada como o “braço legal” do esquema – com negócios públicos. Somente no Rio de Janeiro, a empresa obteve contratos, a partir de 2007, que ultrapassam a quantia de R$ 1 bilhão.
Detalhes já divulgados das gravações entre o bicheiro e seu principal parceiro no ambiente institucional, o senador Demóstenes Torres, revelam que tudo se origina no financiamento de campanhas eleitorais com dinheiro do crime organizado, que usa o sistema de doações para lavagem de suas receitas, cobrando o pagamento em obras superfaturadas.
O esquema parece simples demais, até mesmo para não especialistas. A investigação das atividades de organizações como essa não é segredo para nenhum jornalista com um mínimo de experiência e interesse. Basta observar as relações sociais desse tipo de delinquente.
Nota de rodapé
Nos anos 1980, a revista Veja denunciou as atividades criminosas de um chefe de quadrilha bem postado na sociedade após observar suas relações sociais com autoridades do Judiciário paulista.
No Rio de Janeiro, é longa a lista de casos policiais que têm como epicentro as atividades dos banqueiros do jogo clandestino.
Trata-se de personagens clássicos da crônica policial, que se caracterizam pela personalidade patológica que não aceita os controles sociais e se negam a admitir a punibilidade. Personagens como Carlos Cachoeira acreditam tanto na eficiência de seus esquemas que não se preocupam em disfarçar suas ações. Quando descobertos, surpreende a pouca sofisticação de seus “planos de negócio”.
Contam quase sempre com o beneplácito de muitos representantes do Judiciário, que costumam tratar a contravenção como um delito menor, deixando de enxergar os esquemas de corrupção e violência que cercam essa atividade quase folclórica.
Na mesma edição do Estado de S.Paulo que noticia na seção de Política a abertura de inquérito para investigar as relações de Carlos Cachoeira com o governador de Goiás, Marconi Perillo, o caderno “Metrópole” informa que o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, mandou soltar os chefes do jogo do bicho no Rio de Janeiro, presos na chamada Operação Hurricane da Polícia Federal, alegando que o decreto de prisão não estava devidamente fundamentado.
Um dos presos, o capo conhecido como Capitão Guimarães, havia sido condenado em março a 48 anos de reclusão.
A notícia saiu em uma nota de pé de página.