Assim como jogou a crise política a um novo patamar, a entrevista do deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, a Renata Lo Prete, da Folha de S.Paulo, acusando o PT de pagar mesada aos deputados do PL e do PP, representa um ponto de inflexão na cobertura da imprensa dos escândalos flagrados ou denunciados no governo Lula.
Até sexta-feira passada (3/6), o ponto mais avançado dessa cobertura tinha sido a informação da Veja de que o ex-presidente do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), Lídio Duarte, se demitira por não agüentar as pressões para contribuir com R$ 400 mil mensais para a caixinha do PTB.
Como Duarte teve a má idéia de desmentir a Veja ao depor na Polícia Federal, naquele dia a revista colocou no seu site a gravação da fala do doutor Lídio ao repórter Policarpo Júnior e informou à Folha de S.Paulo no dia seguinte que ele sabia estar sendo gravado.
O que a Veja não explicou foi por que ela já não contou a história direito, com nomes e sobrenomes, na primeira matéria que falava do aperto que levou o presidente do IRB a se demitir. Acabou que o público ficou sabendo do vexame, também pela Veja, mas por vias tortas.
Com as atenções voltadas para as manobras do governo no Congresso, a fim de impedir a instalação da CPI dos Correios, o fato é que foi ficando cada vez mais em segundo plano o ponto de partida do escândalo todo – o vídeo em que o funcionário Maurício Marinho aparece embolsando R$ 3 mil e o áudio em que ele compromete nominalmente o deputado Jefferson.
Neste Observatório, o jornalista Alberto Dines criticou com razão o aparente desinteresse da mídia em escaranfuchar a história da gravação propriamente dita e o jogo rasteiro de interesses nada rasteiros que levou a ela.
À falta disso, esparramaram-se pelas páginas políticas os números das pesquisas, primeiro da Sensus, depois do Datafolha, sobre o declínio da avaliação positiva do governo. Neste último caso, a propósito, o jornal destacou o irrelevante e deu as costas ao essencial no título de primeira página, ‘Datafolha mostra que Lula enfrenta 2º turno’.
Até o mais novo dos estagiários do Datafolha deve saber que pesquisa de intenção de voto a 19 meses de uma eleição e nada são a mesma coisa, porque, no caso, ao escolher o nome que levaria o presidente à segunda rodada, o entrevistado tende a citar aquele que está, como dizem os pesquiseiros, no topo da sua mente. É o conhecidíssimo efeito recall.
De mais a mais, faz tempo que os políticos diziam duas coisas: 1) a reeleição de Lula é o cenário mais provável; 2) mas é improvável que ele se reeleja no primeiro turno. (O que ele não conseguiu nem em 2002).
Então, por que não dar na primeira o que ficou para títulos internos? ‘Aprovação a Lula cai 10 pontos em 5 meses’, ‘Para 59%, Lula não defende mais as idéias que o elegeram’ e, principalmente, dado o ar que o país vem respirando, ‘65% acham que governo Lula é corrupto’ (embora o certo mesmo seria dizer ‘65% acham que há corrupção no governo Lula’).
Lula, visto por Dirceu
Antes da explosão do ‘homem bomba’ Roberto Jefferson (como o chamara, numa capa, a Veja), reportagem política de peso só tinha saído uma: a dos robustos 19 parágrafos em que o repórter Kennedy Alencar, também da Folha, assegura que ‘nunca estiveram tão ruins e distantes as relações entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a cúpula do PT…’.
A matéria, publicada na última quinta-feira, é uma viagem pelo problema, começando no sábado, 7 de maio, e terminando na quarta, 1º de junho. A data inicial é a da viagem do presidente do PT, José Genoíno, ao Japão: ele teria embarcado certo de que, na volta, o intratável assunto do comando da coordenação política do governo estaria resolvido. A data final é a dos mais recentes pensamentos petistas sobre como ‘convencer Lula a agir para dar sinais de que não é refém da crise’.
O texto está encharcado do que o repórter apresenta como fatos indiscutíveis, embora em nenhum momento alguém assuma a paternidade por um único deles que seja. Nada de perder espaço com ‘a Folha apurou’, ‘segundo uma testemunha’, ‘fontes do governo’ ou coisas do gênero.
Alencar conta a sua história – acredite quem quiser. Pensando bem, por que não? Se o repórter não pode ser mais específico em relação às fontes a que recorreu, que diferença fará para o leitor topar com chavões como aqueles ou não?
Mas que a matéria poderia ter sido assinada pelo ministro José Dirceu, lá isso poderia. Não que esteja presumivelmente a seu serviço, mas o ângulo de visão das coisas é sem dúvida o do titular da Casa Civil.
Por exemplo, leia-se o seguinte:
‘Lula, então, convidou Dirceu para uma conversa a sós na Granja do Torto no domingo [30/5] à noite. O presidente, que em conversas com auxiliares sinalizara que achava inútil e desgastante insistir no sepultamento regimental da CPI dos Correios, não tomou as grandes decisões que os petistas e Dirceu aguardavam. O ministro da Casa Civil deixou a Granja do Torto contrariado. Julgou a conversa improdutiva.’
Para meio entendedor, já é o suficiente. Mas tem mais. Só Dirceu é citado entre aspas – duas vezes.
Em 6 de maio, num café da manhã com dirigentes do partido: ‘O PT tem 25 anos de história. Levamos dez anos construindo a vitória do Lula. Foi uma obra coletiva. Não dá para ele decidir tudo sozinho. Não dá mais’.
Em 24 de maio, em outra reunião, quando, segundo Alencar, ‘deu a entender que Lula era o principal responsável pela crise política, Dirceu disse que estava ‘no seu limite’’.
Ele disse algo parecido no ano passado, debaixo da tempestade do Waldogate. Logo se recuperou e anunciou que daria a volta por cima. Mas daquela vez, não era por causa de Lula que Dirceu estava no seu limite. Agora, a crer na reportagem, diz que é. Valeu o dinheiro do jornal.
‘Eu quero contar um episódio’
Eis, enfim, que Jefferson dá uma de ‘Pedro Collor’, na inquietante analogia do colunista Fernando Rodrigues, da Folha. Duas coisas chamaram a atenção deste leitor na entrevista.
A primeira é que o assunto ‘mensalão’, como o entrevistado se refere à mesada supostamente distribuída pelo tesoureiro petista Delúbio Soares, só entrou na conversa quando ela já corria solta – na sétima das 24 perguntas do pingue-pongue.
E entrou por escrachada iniciativa do deputado. A repórter lhe perguntara se ele rejeitava a afirmação de que o corretor Henrique Brandão, a ele ligado, pedia contribuições em seu nome no IRB. Depois de gastar 38 palavras para dizer que rejeitava, Jefferson parou e disse: ‘Eu quero contar um episódio.’ E aí mandou ver.
Os leitores ainda não cobram dos jornais o making of de suas matérias. Mas, nesse caso, a Folha daria uma demonstração de transparência se respondesse a uma única pergunta: de quem foi a iniciativa da entrevista? A resposta poderia esclarecer de vez a história da vendeta do deputado contra o PT.
O segundo aspecto intrigante foi a repórter não ter pedido ao deputado que citasse nomes de políticos aquinhoados pelo tesoureiro do PT. Ou, se ele se recusasse, poderia ter provocado: ‘O senhor sabe de algum integrante da bancada do PL e do PP que tenha recusado o pagamento?’
Não é preciso lembrar que entre os 54 pepistas estão o deputado Severino Cavalcanti, o ex-ministro Delfim Netto. E dos 53 membros da bancada liberal fazem parte o presidente da legenda, Waldemar Costa Neto, e o indicado pela base governista para relatar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a argüição de inconstitucionalidade da CPI dos Correios, Inaldo Leitão.
Eis aí, portanto, o ponto de inflexão da cobertura da crise mencionado no abre deste texto: a pauta, doravante, é a da busca da verdade na escabrosa denúncia jeffersoniana que o PT diz não ter ‘o mínimo fundamento’.
Com a urgência que a acusação demanda e o ofício exige.
[Texto fechado às 16:36 de 6/6]