O caso que tem levado o governador Roberto Requião (PR) às páginas dos jornais do Brasil inteiro nos últimos dias é um ótimo exemplo de como o debate sobre liberdade de expressão é desfocado no país.
Desde 2003, Requião apresenta um programa sobre seu governo e suas próprias preocupações políticas na TV Educativa paranaense. O auditório é formado por uma platéia de secretários e prefeitos. Às vezes, ele dá vazão a trotes de internet (veja aqui o vídeo). Muitas vezes, ataca adversários e a imprensa.
O Ministério Público Federal moveu uma representação na Justiça Federal contra o governador, acusando-o de usar a TV estatal para fins de propaganda pessoal – afinal, atacar adversários em público é uma forma de polir a própria imagem. O juiz Edgard Lippmann decidiu que o MPF tinha razão. A decisão, disponível na internet, foi mais comentada do que lida. Vale a pena lê-la.
Lippmann aponta que há conflito, no caso, entre dois princípios sagrados: a liberdade de expressão e a impessoalidade da administração pública. Nas palavras do juiz:
‘Razoável que tais críticas, sujeitas a um controle `a posteriori´, possam ser emitidas em reuniões governamentais reservadas, ou emitidas esporadicamente em entrevistas ou eventos públicos, todavia, não de modo sistemático como vem procedendo, lançando mão de instrumento que detém sob seu império como chefe do executivo estadual, atitude que transborda, escancaradamente, dos limites da função `educativa´ ínsita a tal rede pública.’
Ou seja: nada contra o governador fazer críticas a seus adversários; tudo contra ele usar sistematicamente a televisão pública para atacá-los. A opinião sobre os adversários é dele; a TV, porém, é mantida com dinheiro público. Caso desobedecesse a decisão, Requião teria de pagar multa de 50 mil reais na primeira vez e 200 mil reais, na reincidência.
Destratada em público
O governador, então, bateu na tecla da liberdade de expressão e disse estar sofrendo censura prévia. A Federação Nacional dos Jornalistas e a Repórteres Sem Fronteiras deram eco às reclamações. O presidente da Associação Brasileira de Imprensa também, inclusive gravou um depoimento para a TV paranaense.
Requião, então, fez um programa com o carimbo de censurado (assista um trecho aqui), o que foi visto pelo juiz como provocação. Ele multou. Não só multou, como também condenou a TV Educativa a transmitir a cada 15 minutos uma nota de desagravo (que também está no YouTube). O colunista Rogério Galindo, do jornal Gazeta do Povo, achou exagerado o tom de alguns trechos da decisão. Mas ainda mais exagerada foi a reação de Requião: suspendeu por um dia a programação da TV Educativa, substituindo-a pela intercalação da nota de desagravo e da manifestação do presidente da ABI.
De certa forma, o que Requião fez já é um método de trabalho. Galindo lembra, no blog Caixa Zero, que na campanha eleitoral de 2006, quando concorreu à reeleição, Requião tirou do ar o site do governo estadual quando foi proibido de usá-lo para fazer propaganda pessoal.
Quando a procuradora-geral do estado – encarregada de defender o governador – criticou a idéia de tirar a TV do ar, ele a destratou em público e ela entregou o cargo.
Por hipótese
Ao bater na tecla da censura, o governador e as três entidades de jornalistas desviam o foco da questão. Requião não é imprensa, e sim governante. Não se tratou de censura prévia, e sim de tentativa de evitar que um abuso percebido não se repetisse. Especialmente em ano eleitoral, isso é um tipo clássico de conduta que deve ser fiscalizada.
Depois dos lances mais polêmicos, a questão descambou para o lado venenoso e ad-hominem da política: o PMDB paranaense ameaça o juiz com um dossiê que apontaria ligações escusas. O conteúdo não foi divulgado, mas jogar o holofote sobre a personalidade do juiz também é uma forma de fugir do mérito da questão. Jogar o holofote do caso sobre a personalidade do Requião também seria, também é. O que importa é o mérito dos atos: o que ele fez e o que o juiz decidiu.
Para cutucar a seara do ad-hominem, lembrando a polarização política em que vive o Brasil, especialmente na internet, resolvi trocar mentalmente os personagens.
Pense no falecido senador Antonio Carlos Magalhães usando a TV educativa baiana para atacar seus desafetos, por exemplo, quando foi governador. Nunca assisti TV na Bahia, mas parece ter sido algo perfeitamente possível, especialmente conhecendo o conteúdo do jornal impresso dos Magalhães, o Correio da Bahia. Não consigo ver o sindicato dos jornalistas baianos e a Fenaj noutra posição além da de denunciar o abuso. Imagino o governador tucano José Serra hipoteticamente usando a TV Cultura de São Paulo da mesma forma. Não consigo ver o sindicato dos jornalistas de São Paulo e a Fenaj reagindo de outra forma além de denunciar o abuso.
Tempos interessantes
Vivemos uma época interessante: os meios informativos explodiram de tal forma que muita gente – inclusive jornalistas – parece se confundir a respeito das fronteiras da propaganda. Não é por tolice: é que a sociedade da informação e a sociedade do espetáculo vêm gradualmente se fundindo, conforme os meios de propaganda ficam a cada dia mais fluidos.
A maior expressão dessa fluidez está na quantidade de profissionais que se formaram em jornalismo mas trabalham em assessorias de imprensa – ou seja, numa das engrenagens do motor da propaganda. O material gerado por eles é muitas vezes acriticamente reproduzido pela imprensa sem maior checagem. Às vezes, isso é apenas bobo e preguiçoso – um jeito barato de pintar papel. Noutras, comprometedor. O blog da Adriana Santana, Jornalismo Cordial, vem procurando mapear um pouco disso.
Com a internet e a febre do conteúdo colaborativo, os escoadouros para a propaganda fluida se multiplicaram. A Wikipedia, que pode ser editada por qualquer voluntário, é um instrumento muito bem-vindo por abrir espaço para a sabedoria coletiva, mas também é um escoadouro fácil de informação propagandística. Já tratei disto anteriormente no blog E Você Com Isso.
Observe, por exemplo, o verbete sobre o governador Requião na Wikipedia: ele praticamente só inclui informações que poderiam ter estado em seu site de campanha. Parte delas, pelo menos, estava. Quando alguém postou a informação sobre o trote de internet em que ele caiu, ela foi retirada. Tudo bem, era bobinha mesmo. Mas aí não sobrou nada de crítica ao homem. Crítica a ele, em sites colaborativos, só no escracho da Desciclopédia. Mas aí é humorismo.
Isso não fica apenas na Wikipedia. O PR Watch relata o caso de uma relações-públicas americana que postava em sites tipo ‘Você Repórter’ notícias atacando críticos da Wal-Mart, que já havia sido cliente da agência para a qual a ‘repórter-cidadã’ trabalha. Um jornalista do Talahassee Democrat escreveu a respeito: ‘Ao forçar suas equipes esgotadas a depender de pessoas de fora para obter conteúdo, e depois ao publicar isso sem muita supervisão editorial, os jornais podem ser tomados por malucos e marqueteiros que fariam Jayson Blair parecer um plagiário de escola secundária’. Blair é o repórter cuja prática de plagiar e inventar informações, ao ser revelada, desencadeou uma longa crise no New York Times.
Nesse ambiente confuso, muita gente – inclusive representantes de entidades de jornalistas – parece estar mais perdida do que cego em tiroteio, a ponto de achar que um programa apresentado pelo governador tem as mesmas características de um jornalístico. O mais preocupante é isto: o referencial do que é jornalismo – não digo nem do que é ‘bom’ jornalismo – parece estar se perdendo nesse processo, ao menos no Brasil.
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Jornalista