Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A fabricação de eras e enganos

O anunciado ‘fim da Era Lula’ é fruto de uma confusão semântica entre época e mandato. Uma fase não se estabelece por decreto e antecipação, depende dos fatos que a marcaram e demarcaram. Os desdobramentos dos dois últimos governos ainda estão em curso, a História está sendo escrita, a Era Lula ainda não pode ser periodizada nem qualificada, é uma hipótese. Ou desejo.


A mesma pressa classificatória assume proporções delirantes nas avaliações sobre os efeitos do tsunami Wikileaks, o megavazamento de informes confidenciais do Departamento de Estado dos EUA pelo site da ONG criada pelo ciberativista australiano Julian Assange.


É assombroso o número de documentos secretos obtidos e divulgados pelo Wikileaks (cerca de 250 mil), mas o derrame ainda não completou um mês, as peças que vieram a público continuam dispersas, fragmentadas, incompletas, muitas delas irrelevantes, meras curiosidades superadas pelo tempo. Prematuro, insensato e enganoso proclamar o início da ‘Era da Transparência’ ou o ‘Fim do Sistema’ tomando por base a badalação obtida pelas primeiras revelações do Wikileaks.


Arsenal de informes


A transparência prometida por Assange e sua legião de seguidores só conseguirá se consumar no âmbito das relações diretas entre governantes de governados. O cidadão do mundo é um ideal a ser perseguido que só poderá efetivar-se quando houver um governo mundial.


A ‘revolução’ produzida pelo Wikileaks pode ser ilustrada e dimensionada através do informe divulgado semana passada sobre as dramáticas decisões em seguida à hemorragia intestinal sofrida por Fidel Castro, em meados de 2006. Segundo o documento americano, o dirigente cubano recusou a colostomia que o obrigaria a usar por tempo indeterminado uma bolsa externa para a coleta das fezes. O documento não revela que, posteriormente, Fidel resignou-se e hoje, passados quatro anos, recuperado, está livre do acessório cirúrgico e das roupas tipo jogging que usava para disfarçá-lo.


Este tipo de ‘documento-bomba’ vai, porventura, revolucionar as relações internacionais ou alterar a secular comunicação entre as embaixadas no exterior e as chancelarias como alguns futuristas apregoam? Disparate, coisa de profeta desempregado.


A estratégia adotada pelo Wikileaks para desovar seu explosivo arsenal de informes secretos segue em enredo puramente promocional, de modo a ampliar o ‘mercado’ de veículos jornalísticos dispostos a ecoar pelo mundo afora seu esmerado sistema de vazamentos. Legítimo: a economia de mercado pressupõe o oferecimento contínuo de produtos nem sempre os mais necessários.


Sede de modismos


Imperioso reconhecer que o ativista Assange soube aproveitar com inteligência todas as facilidades do ‘sistema’ que pretende destruir e atingiu seus objetivos num prazo recorde. A extraordinária notoriedade resulta, sobretudo, da onipotência norte-americana que insiste em tratá-lo como um Bin Laden cibernético e oferece-lhe um upgrade que levará tempo para ser desfeito.


O que importa neste momento é gozar o espetáculo, mas evitar as tentações da história instantânea. E a etiquetagem definitiva. O processo de aferições nunca é óbvio e retilíneo, as surpresas são inevitáveis. O imponderável ainda conta em meio ao determinismo tecnológico.


Para saciar a sede de novidades, trepidação e modismos melhor degustar uma dieta rica em moderação. Dá mais prazer do que sorvê-la e logo esquecer.