Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A falsa impressão de uma manchete

‘Não podemos ficar subordinados ao que um juiz diz que podemos ou não’, foi a manchete da edição do O Globo de sexta-feira (9/4). A frase, atribuída ao presidente Lula, foi proferida um dia antes, em um evento do PCdoB para a consolidação do apoio à candidatura da petista Dilma Rousseff à Presidência da República. O encadeamento de raciocínios e conclusões que a manchete, por si só, pode causar no leitor é sintomático: Lula, o pregador da desordem, comete mais um acinte às instituições democráticas e à tripartição de poderes ao incitar o desrespeito a decisões judiciais. A eventual desídia do leitor em ir mais a fundo no assunto da manchete, lendo a matéria toda ou até mesmo buscando a íntegra do discurso do presidente, contribui de forma significativa para que sua opinião seja formada nos efêmeros três segundos que levou para ler as negritadas e garrafais letras que estampam a cabeça da edição do dia do referido noticiário impresso, desenvolvendo uma série de conclusões fundadas na superficialidade de sua fonte e no vácuo de maiores detalhes que esta mesma superficialidade lhe apresenta.

O encontro também fora veiculado no sítio oficial do Tribunal Superior Eleitoral. O teor da matéria, em que pese se referir ao mesmo evento, à mesma fala e ao mesmo emissor, mostra um sentido categoricamente oposto ao trecho reproduzido pela manchete do tradicional periódico fluminense, escancarando o ardil utilizado para veicular de maneira descontextualizada aquela frase do discurso do presidente. Consta no sítio do TSE (grifo acrescido):

‘O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou ontem pela primeira vez de um ato político de apoio à candidatura de Dilma Rousseff (PT) desde que ela deixou o governo, há nove dias, e criticou a Justiça Eleitoral. Na abertura do encontro do PCdoB, Lula afirmou que ninguém pode ficar esperando, a cada eleição, mudanças na lei e garantiu que fará `campanha na rua´ para Dilma. `Não podemos ficar subordinados, a cada eleição, ao juiz que diz o que a gente pode ou não fazer´, discursou Lula, que cancelou reunião com a Comissão de Ética da presidência, na noite de ontem, para ir ao ato de apoio do PCdoB à ex-ministra da Casa Civil.’

Boa fé é imprescindível

O fato é que as normas eleitorais se caracterizam em parte pela mutabilidade. A edição de resoluções do TSE regulamentando de forma específica os pleitos eleitorais difere de eleição para eleição, prescrevendo os deveres e obrigações in concreto dos candidatos a cada ocasião eleitoral. Cada eleição, assim, possui suas normas específicas, sem embargo das normais gerais e perenes. A matéria encontrada no site do TSE deixa claro que o teor do fragmento do discurso do presidente reproduzido pelo O Globo nada tem a ver com a ardilosa intenção de imputar ao presidente a pecha de prócer incentivador do descumprimento da lei e da desordem judicial. Quando muito, colocou o presidente que não se deve ficar adstrito às prescrições de normas que sequer foram editadas. As aduzidas ‘mudanças na lei’.

Critique-se o presidente Lula pelas recentes ironias feitas no que diz respeito às sanções pecuniárias impostas pelo TSE, que entendeu como campanha fora de hora as inaugurações de obras do PAC e eventos correlatos. Critique-se pelas condutas tidas como indecorosas pelos magistrados da cúpula da justiça eleitoral do país e que os levaram a aplicar tais multas ao mandatário-mor da nação. Critique-se até mesmo pelos eventuais antecipados desvios eleitorais que podem ser encontrados neste encontro promovido pelo PCdoB para ratificar o apoio à candidatura petista. Mas faça-o sustentando-se na transparência e na honestidade, não nas turvas águas da má fé e de possíveis conveniências políticas ou particulares, diametralmente contrárias em seu espírito ao interesse público que deve animar a nobre função de informar e servir de sustentáculo para o exercício da democracia.

A instituição da Presidência da República impõe condutas com ela condizentes, emanando arreios legais às ações de cunho político do seu ocupante de modo a impedir que a função presidencial seja exercida com qualquer espécie abuso. Uma vez quebrados tais arreios, submetê-lo-á a lei às devidas conseqüências nela devidamente prescritas. A imprensa, nesse contexto, tem papel fundamental na denúncia e apuração de tais abusos. Recomenda-se apenas não alicerçar matérias jornalísticas em arremedos manipulatórios dissonantes da realidade, pinçando frases de efeito em discursos e lhes conferindo sentido diverso do originalmente empregado. A boa fé, afinal, mais do que um valor social, é imprescindível ao exercício do bom jornalismo.

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Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte