Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A falsa objetividade da mídia brasileira

Recentemente o jornalista Ali Kamel publicou um artigo em O Globo, onde defende a tese de que os grandes jornais escolhem pautas relativamente iguais, pois são objetivos e técnicos. Como em todo mundo desenvolvido, no Brasil também seria assim. Para Kamel, O Globo, a Folha de S.Paulo e o Estado de S.Paulo, ‘destacam sempre os mesmos assuntos’ porque ‘dispõe de jornalistas treinados’ que ‘sabem reconhecer num exame dos fatos o que é relevante e o que não é’. Portanto, essa homogeneidade não refletiria a ditadura do pensamento único, mas a vitória da isenção e do profissionalismo. Será?

Nem todos parecem concordar com Kamel [ver ‘Quando o óbvio não é óbvio para todos‘]. Nos Estados Unidos, com a ‘guerra ao terror’, a imprensa foi duramente criticada pela maneira como só reproduzia o que interessava à Casa Branca. O pouco de independência que restava à mídia esboroou-se. Na França, acadêmicos que também militam no jornalismo, como Serge Halimi, escrevem sobre as relações promíscuas entre as grandes empresas e os meios de comunicação, que entrelaçam interesses e contaminam as informações levadas ao leitor/telespectador.

No Brasil não é diferente. O próprio veículo onde Kamel trabalha, O Globo, tem uma história exemplar em matéria de desrespeito à democracia: não só participou do golpe de 1964, como apoiou a ditadura brasileira durante toda sua duração. A Rede Globo de televisão tentou fraudar as eleições para o governo do Rio de Janeiro em 1982 e editou o debate que elegeu o presidente Fernando Collor em 1989. Enfim, depois de participar da derrubada de um presidente legalmente empossado, esta empresa de comunicação apoiou um regime homicida e continuou manipulando o noticiário mesmo depois que a ditadura terminou.

Roberto Marinho foi o homem mais poderoso do país por décadas, sem reeleição. Seu cargo era vitalício. Imperador do Brasil, mandava e desmandava. Era uma ditadura branca, o Império do ‘Doutor Roberto’. Não é de se estranhar, portanto, que Kamel escreva o que escreve. Se diferente fosse, não desfrutaria da posição que desfruta. É o óbvio ululante, é elementar. Não é necessário ser nenhum Sherlock para concluir que O Globo não colocaria um jornalista descomprometido com a defesa de seus interesses em posição de tamanho destaque.

Polêmica com Chavez

Apesar da ‘folha corrida’, recentemente O Globo envolveu-se numa polêmica com o presidente da Venezuela, colocando-se como defensor da democracia contra um ditador. Hugo Chávez estaria em franca ‘escalada autoritária’. O Globo parece entender por autoritarismo a estatização de uma empresa e a não renovação da concessão para uma rede de televisão. Estatizar é atentar contra a democracia? Por esta lógica, então, privatizar seria aprofundar a democracia. Será que esta visão é objetiva ou ideológica? Não creio na objetividade que Ali Kamel diz existir, mas percebo que freqüentemente os jornalistas menos comprometidos com a democracia e a pluralidade de visões e opiniões são os que mais se dizem imparciais.

E por que o poder público não pode deixar de prorrogar a concessão pública de um canal de televisão? Em especial quando este canal participou da criminosa tentativa de destruir a ordem legal e democrática do país. Não conheço o código penal venezuelano, mas parece-me que se Chávez não agisse desta forma e renovasse a concessão desta rede de televisão, que teve comportamento ilegal, ele, um funcionário público, estaria prevaricando. Além do mais, parecem esquecer que a concessão é pública. E quem recebeu um mandato para representar os venezuelanos foi o presidente Hugo Chávez. Os interesses de um magnata da comunicação, ainda por cima envolvido na tentativa de depor o presidente do país, vale mais que a vontade de milhões de eleitores? Para os ‘democratas’ da mídia brasileira parece que sim.

Em 2002 pôde-se averiguar o ‘espírito democrático’ da nossa imprensa. O golpe de 11 de abril foi categoricamente rechaçado pela maioria da população venezuelana e fracassou por completo, mas enquanto acreditou que ele tinha sido um sucesso, a maior parte da imprensa brasileira comemorou entusiasticamente a tentativa de derrubar o presidente Hugo Chávez.

A revista Veja, por exemplo, em edição lançada logo após o malogrado movimento, mas num momento em que seus editores ainda não sabiam que o putsch havia fracassado, chamou Chávez de fanfarrão na capa e de falastrão no título da matéria. Ou seja, muito adjetivo, pouca objetividade, todo apoio à ilegalidade e nenhum apreço à democracia. Para a Veja, a boa resposta do ‘mercado’ ao golpe foi argumento definitivo para legitimar o desrespeito à vontade popular expressa pela imensa votação recebida pelo presidente:

‘A inflação, somada à estagnação econômica, tirou do presidente seu apoio mais fiel, o da classe baixa. Chávez se considerava um Robin Hood bolivariano. Era mais um bufão, que entretinha o povão com programas de televisão em que se comportava mais como animador de auditório do que como presidente. Sua queda foi recebida como boa notícia no mundo: melhorou o índice risco país da Venezuela, a bolsa de Caracas disparou (alta de 8%) e o preço internacional do petróleo caiu 9%.’

No Brasil, uma das poucas exceções foi a revista Carta Capital, onde o jornalista Bob Fernandes relatou como os estratos médios das forças armadas e grande parte do povo resistiram ao golpe. Segundo ele, as televisões venezuelanas desempenharam um papel extremamente tendencioso, só mostrando as manifestações anti-Chávez. Depois da frustrada tentativa de tirá-lo da presidência, quando Chávez pediu para os donos dos meios de comunicação repensarem sua atuação, dizendo que queria dialogar, Alberto Federico Pavell, dono de uma das TVs, a Globovisión, ‘falou como quem sabe ser detentor de um poder igual, ou superior ao de um Presidente da República – Não temos medo… Se você está estendendo uma mão verdadeira, nós podemos sentar e conversar’.

Imprensa arrogante

Mesmo após o fracasso da tentativa de derrubar o presidente eleito, as grandes empresas de comunicação da Venezuela mantiveram a postura arrogante e ameaçadora. Em 3 de novembro de 2002, meses após a frustrada tentativa de golpe, José Toro Hardy, no El Universal, escreveu uma carta aberta a Hugo Chávez em que chega ao ponto de ameaçar o presidente do país com um final semelhante ao de Salvador Allende.

‘Después de los sucesos del 11 de abril, me permití escribirle en El Universal una carta abierta en la cual le sugería una agenda capaz de devolverle el sosiego al país. (…) Recuerde el ejemplo de Salvador Allende. (…) Es ese el destino que desea? Evítele al país y a Ud. mismo una salida a la chilena.’

Estes são os democratas da Venezuela? É esta a imprensa que a mídia brasileira defende? Quando afirmam que Chávez é um ‘falastrão’, um ‘fanfarrão’, lembro-me de Salvador Allende. Culto, refinado, bem vestido, democrata até a medula. Quis distribuir renda e propriedade. Acabou literalmente bombardeado. Em seguida assumiu o poder o general Pinochet, um dos maiores carniceiros da história. As qualidades de Allende de nada serviram para evitar a tragédia que se abateu sobre o Chile. Para agüentar o ‘tranco’, a pressão das elites venezuelanas e do governo norte-americano, talvez só alguém egresso das forças armadas. Um político sem penetração entre os militares, enfrentado os interesses que Chávez enfrenta, dificilmente conseguiria se manter na presidência.

Hugo Chávez pode não ser um gentleman. Com certeza não é bonito e charmoso como Che Guevara. Nem tem a cultura e a sofisticação de um Salvador Allende. Também não é um intelectual, embora, ao contrário de Lula, que já falou sobre a ida de Napoleão à China (sic), Chávez nunca tenha errado nas numerosas referências históricas que normalmente faz em seus discursos.

Por séculos a elite econômica venezuelana dilapidou as riquezas do país sem distribuí-las entre a maioria da população. Hugo Chávez, portanto, é mais conseqüência do que causa da atual situação. Talvez ele não seja o líder dos sonhos, mas é legítimo produto da história venezuelana.

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Professor, mestrando em História Política da UERJ