Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A falta de um jornal popular

A demissão da psicanalista Maria Rita Kehl do corpo de colaboradores do jornal O Estado de S. Paulo reacende a incontornável discussão sobre a ausência de pluralismo na imprensa brasileira de grande circulação, em clara ofensa ao disposto no capítulo da Comunicação Social da Constituição Federal. Kehl afirma ter sido demitida por ‘delito de opinião’ após ter escrito artigo em que denuncia o esforço de desqualificação dos votos das camadas mais pobres da população.

Até mesmo argumentos utilizados na eleição passada pelo conhecido sociólogo Hélio Jaguaribe indicando que os votos que elegeram Lula possuíam um significado inferior em relação aos votos do candidato derrotado – estes sim, e só estes, como que por encanto, dotados de uma dimensão de nação – constavam do artigo que causou a demissão. Por desdobramento, o presidente Lula, que promoveu recuperação significativa do salário mínimo, expandiu a classe média, reduziu robustamente os milhões de famintos, recupera a Petrobrás e a indústria naval, sob reconhecimento internacional expressivo, não teria sido eleito – segundo esta teoria esdrúxula – por votos com plena legitimidade.

EUA, o modelo de democracia

Mais surpreendente do que ver quem se encontra entre os insinuadores de tal interpretação que, por paralelo, remonta aos critérios da eleição a ‘bico de pena’, é a a assustadora complementaridade e identidade que estes conceitos possuem com a nova ‘teoria da democracia’ exalada pela Casa Branca, segundo a qual, não basta que um governo seja eleito pelo voto democrático para conferir-lhe legitimidade. Para o novo critério de democracia que vem do norte, depende de como estes governos eleitos governem ou qual concepção de democracia apliquem para serem, em definitivo, considerados ou não democráticos.

Os exemplos estão por aí. Se um governo decide assumir plena soberania sobre o seu território, como o governo do Equador, que recuperou o controle sobre a base militar de Manta, antes administrada por contingentes norte-americanos, este comportamento não permite que lhe seja conferido o rótulo de democrático. Ou quando um governo eleito democraticamente pelo voto direto – o que não ocorre nos EUA – decide nacionalizar suas fontes de recursos naturais, como o faz o governo da Bolívia, isso também configuraria comportamento não democrático, coincidentemente, por contrariar os interesses vitais de empresas norte-americanas em várias partes do mundo.

O modelo de representação política dos EUA, mesmo com históricos altos graus de abstenção, de cadastros eleitorais em que se faz assepsia dos eleitores negros, pobres, asiáticos e ex-presidiários, da bilionária dependência de esquemas financeiros para que alguém seja candidato e do impenetrável controle de uma mídia dominada por anunciantes vinculados à indústria bélica, nada disso pode ser questionado do ponto de vista democrático. Nem mesmo o histórico de vinculações da Casa Branca na supressão dos regimes democráticos em várias partes do mundo ao longo de décadas. Lá, sim, existiria o modelo de democracia.

A regulação crescente da comunicação

A psicanalista Maria Rita Kehl ousou revelar murmúrios indignados que podem estar povoando os ambientes das oligarquias midiáticas diante da impossibilidade de impedir que herdeiros de ex-escravos possam exercer seu direito a voto. Sobretudo depois de estarem gradativamente recuperando o seu direito de trabalhar com carteira assinada, de serem reconhecidos pelo Estado por meio de um programa social que lhes retira e aos seus filhos do corredor da pena de morte pela fome. O Brasil acaba de ser reconhecido pela FAO com um dos países que mais contribuem na atualidade para a redução da fome. Mas, do lado de cá, sociólogos, um tanto envergonhados, é bem verdade, querem insinuar que os votos destes que escapam da pena de morte da fome não teriam legitimidade. E quem revela este pensamento merece a pura e simples sentença da demissão. Decidida no mesmo ambiente em que floresceu e germinou com desenvoltura a discricionária e cruel ideia de um ex-diretor do jornal mencionado, que sentiu-se no direito de matar uma jovem jornalista porque, afinal, ela teria cometido a gravíssima falta de pretender… terminar o namoro.

Quando o senador Suplicy sobe à tribuna e solicita à direção do centenário jornal que reverta a demissão de Kehl – que, para nossa sorte, não corre risco de vida e poderá nos iluminar com novas análises corajosas se encontrar espaços de publicação –, embora bem intencionado, pode ser que não conheça episódio marcante da história deste diário. Décadas atrás, o escritor Monteiro Lobato, aflito com a incultura e particularmente com o contingente de iletrados, solicita aos donos deste diário que o veículo fosse utilizado de modo militante e compromissado na luta para vencer o vergonhoso quadro de milhões e milhões de analfabetos no país. Após muito pensar, um dos proprietários responde ao criador do Sítio do Pica-pau Amarelo, provavelmente com o mesmo tom com que hoje condenam o voto dos pobres a uma espécie de sub-voto: ‘Ô Lobato, mas se todo mundo aprender a ler… quem é que vai pegar no cabo da enxada?’ A proposta de Monteiro Lobato foi recusada. O pluralismo da psicanalista Kehl, condenado. Veremos o que ocorrerá em relação à solicitação do senador…

Apesar da evidente ausência de pluralismo na mídia brasileira, de sua crônica incapacidade para cumprir minimamente a Constituição Federal, do indevassável controle de algumas poucas famílias sobre a indústria da informação no Brasil, ainda assim há gente que se preocupa não com este controle já existente do mercado cartelizado sobre os veículos de comunicação, mas com uma mera proposta de regulamentação da Constituição, colocando-a em sintonia com a tendência mundial, que registra regulação crescente da comunicação como único caminho para assegurar-lhe pluralismo, diversidade, bem como caráter educativo, civilizatório e informativo nos seus conteúdos.

Os que publicaram que o Brasil não tinha petróleo podem corrigir-se?

O problema , no entanto, é que anos e anos de alerta e argumentação junto aos segmentos progressistas para que considerem a comunicação como algo estratégico, parece surtir pouco efeito organizativo. Só eventualmente, em momentos decisivos da política, este debate retorna ao cenário central da conjuntura, mas quase sempre limitado à reclamação indignada que, embora justa, termina por não colocar na mesa das iniciativas centrais das políticas progressistas a necessidade de se construírem alternativas concretas.

Será que um partido como o PT, com capacidade de alcançar a presidência da República galvanizando a simpatia e a adesão de fatias expressivas da sociedade brasileira, mesmo ainda com uma curta existência na cena política, não teria condições de organizar, criar, fundar, um jornal de cunho popular, de grande circulação, com capacidade, aí sim, de promover o verdadeiro pluralismo informativo, já que a queixa, a bronca, a reclamação sobre a falta deste atributo cidadão junto aos oligarcas da mídia tem se mostrado reiteradamente frustrante?

Tantas vezes muitos de nós já escrevemos e reiteramos aqui mesmo e em outras tribunas sobre o que representou o jornal Última Hora, criado sob o estímulo de Vargas, ele mesmo alvo de intensa campanha de desmoralização e destruição de imagem, na época intitulada ‘mar de lama’. Com a imensa popularidade que possuía, seja por ter criado a Petrobrás, o salário mínimo, os direitos trabalhistas, a licença maternidade, a siderúrgica de Volta Redonda, a Rádio Nacional, a Rádio Mauá, o Instituto Nacional do Cinema Educativo, o BNDES etc., Vargas percebia que se dependesse da imprensa da época o Brasil nunca teria petróleo, o salário mínimo e os direitos trabalhistas não passavam de privilégios descabidos, que a única linha editorial verdadeira e aceitável era a deposição do presidente. Ou seja, será que magnatas da comunicação que chegaram ao ponto de bradar o Brasil não possuía petróleo podem ser sensibilizados e corrigir-se? O argumento ainda é válido para hoje. Como disse Giordano Bruno, quando as fogueiras da Inquisição estavam sendo acesas: ‘Que ingenuidade a minha, pedir ao poder para reformar o poder.’

É hora de recriar um jornal popular

Será que as forças progressistas não devem pretender construir seus próprios meios de comunicação? Assim como o PT já revisou grande parte dos preconceitos que tinha contra Vargas e também quanto à política de alianças, não terá também chegada a hora de revisar uma linha política segundo a qual jornais de partido ou de segmentos não se justificam mais na política moderna e que o recomendável é a interlocução por meio da própria mídia dos grandes capitalistas? A julgar pelo tom indignado e os exemplos que o presidente Lula apresenta contra a manipulação desinformativa sobre a sua gestão e sobre sua candidata, talvez tenha chegado o momento de se usar o imenso capital de popularidade para organização de um jornal popular, nacionalista, de circulação diária, massiva. E, além disso, amparado em uma Fundação para o jornalismo público, dotada de uma faculdade capaz de gerar uma nova linguagem jornalística, para abrir uma nova cultura de jornalismo condizente com os novos tempos vividos pelo país. Um tempo em que milhões e milhões saem dos grotões físicos e sociais, iniciam-se no exercício de certos direitos e no consumo de bens indispensáveis, mas não dispõem ainda do direito de ler um jornal que retrate a marcha das mudanças que o Brasil está experimentando e da própria mudança que suas vidas vem registrando, sob o ponto de vista civilizatório.

Basta que olhemos com mais atenção o mundo. Registra-se a tendência de regulação no campo das comunicações para assegurar a diversidade, a pluralidade, o humanismo e o padrão civilizatório desta indústria. E, se olharmos mais em volta de nós, perceberíamos vários países com um grau de pluralismo jornalístico invejável diante do monolitismo estreito e hostil às mudanças que vivenciamos na sociedade brasileira. Na Argentina, há o jornal Página 12; no México, há o diário La Jornada; na Bolívia, ainda não completou um ano de vida o jornal Cambio, mas já é o recordista de vendagem, junto com o tradicional La Razón, que tem 70 anos de vida; e, por fim, nasceu o Correo del Orinoco, do qual foi redator o brasileiro Abreu e Lima, que lutou junto a Bolívar na Independência frente ao imperialismo espanhol.

Toda vez que nos indignarmos com os fartos e incorrigíveis exemplos de jornalismo precário da imprensa brasileiro, será que não deveríamos também, para além da crítica, nos perguntar sinceramente por que não criamos o nosso próprio jornal popular? Não seria essa a crítica mais consequente a esta torrente de facciosismo que estamos a enfrentar? Na história do jornal Última Hora está uma parte das respostas.

******

Jornalista