Variante de uma velha piada para entrar em um assunto sério:
Repórter – É verdade que o senhor continua batendo na sua mulher?
Político – Não. Eu nunca bati na minha mulher.
Manchete no dia seguinte: ‘Político nega que continua batendo na mulher’.
É mais ou menos esse o espírito do título ‘Dados do BNDES confirmam favorecimento’, de O Estado de S.Paulo da quarta-feira, 14.
A história começou no domingo. E já nasceu com problemas – o que obriga a deixar para daí a sete parágrafos a questão do título que, se verá, merece apanhar.
Naquele domingo, tanto o Estado como a Folha de S.Paulo deram matérias acusando o BNDES de aprovar mais empréstimos a municípios governados pelo PT do que a outros. [Aprovação não quer dizer liberação. Esta depende do Tesouro.]
A acusação é a mesma, mas os números não conferem. O Estado, citando como fonte o site da instituição, publicou que desde a posse de Lula até junho passado o BNDES aprovou créditos para 18 prefeituras – 13 das quais do PT. Em valor, esses financiamentos equivalem a 92% do total.
Já a Folha informou ter feito um levantamento segundo o qual de janeiro a junho deste ano o BNDES aprovou créditos para 56 prefeituras – 23 do PT. Em valor, esses financiamentos equivalem a 68% do total. Na quarta, ao voltar ao assunto, o jornal citou como fonte da primeira reportagem ‘dados fornecidos por e-mail pela assessoria de imprensa do BNDES’.
Folha e Estado voltaram ao assunto – e outros entraram nesse dia – em razão da coletiva, na véspera, do diretor da área do banco que trata desses financiamentos.
Sem fazer referência aos seus números de domingo, o Estadão da quarta deu outros, ‘divulgados ontem pelo BNDES’, para o período de janeiro de 2003 a 4 de julho último: 29 aprovações, 14 das quais para prefeituras do PT. Em valor, 78% do total.
A Folha tornou a citar os seus números e esclareceu que o diretor entrevistado ‘não apresentou números comparáveis aos que foram fornecidos ao jornal na semana passada’. E contou que só ‘diante da insistência dos jornalistas’, o diretor forneceu o que seria a lista de todos os contratos firmados para obras sociais e de infra-estrutura (os tais 29, 14 para prefeituras do PT).
O que dá para concluir é que os repórteres do Estado, dando-se por satisfeitos, preguiçosamente, com o que leram no site do BNDES, contaram menos da metade da história, em matéria de números. E que o repórter da Folha, embora tenha feito um serviço muito melhor, em matéria de dados, contexto e entrevistas, deu, como se fossem apenas do primeiro semestre deste ano, números que cobriam todos os 18 meses do governo Lula. E não se corrigiu.
Título parcial
Demonstrados, assim, os padecimentos do leitor submetido a matérias de jornais rivais sobre o mesmo assunto, com a mesma embocadura, mas com números errados ou datas erradas, chega enfim a hora de falar dos padecimentos do protagonista das reportagens, no caso do BNDES, na figura de um de seus diretores. Os padecimentos lhe foram infligidos por ação e omissão.
O que esse diretor, Márcio Henrique Monteiro de Castro, fez ao reunir o reportariado foi dizer: sim, o banco tem aprovado mais financiamentos e de maior valor para prefeituras petistas do que para outras; não, o banco não privilegia o PT – tanto assim que o mesmo já acontecia no governo Fernando Henrique; e a razão disso é que em 1996 e 2000 o partido elegeu prefeitos ‘em muitas cidades médias, mais modernas, mais bem aparelhadas, que são os mutuários do BNDES’.
O trecho entre aspas é da matéria do Estadão (meras 45 linhas de coluna, sob um título de três colunas – aquele de que se começou a falar neste texto –, abaixo da dobra da página, sem sub, ante as 96 linhas da Folha, encimadas por uma manchete e um subtítulo também de página inteira.
Mas, diferentemente da Folha, que respeitou o leitor e a fonte, reproduzindo a numeralha apresentada relativa ao período 1999 a 2002, o Estado não fez, nem com palavras, nem com cifras, referência ao argumento mais forte do diretor Castro – o de que as prefeituras do PT também ficavam com a parte do leão dos créditos do BNDES no segundo mandato de FHC. Essa a omissão imperdoável.
A ação imperdoável, ainda mais grave, está no título. Trata-se de uma falsidade pela simples razão de que o texto que se lhe segue não o suporta. Vale a pena ler de novo: ‘Dados do BNDES confirmam favorecimento’. Só faltou – ou melhor, nem faltou – acrescentar ‘indevido’.
E não se venha dizer que é uma questão de interpretação. Eis os principais sinônimos arrolados pelo Aurélio para o verbo favorecer: ‘ser em favor de, dar auxílio a; apoiar, defender, proteger, beneficiar, fazer favor ou obséquio a; proteger com parcialidade…’
A parcialidade do título, em um jornal que desgosta do presidente do BNDES ainda mais do que do PT – contrasta constrangedoramente com a límpida objetividade da manchete e do sub da Folha: ‘BNDES admite repasse, mas nega viés político’. E: ‘Diretor do banco reconhece que PT tem recebido mais recursos da instituição, mas diz que não há interferência nas aprovações’.
Em determinadas circunstâncias, para determinados interlocutores, não adianta dizer que nunca se bateu na mulher. Porque, para eles, desmentido é confirmação.