Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A função da imprensa

Numa das primeiras aulas do curso de Jornalismo aprendi que o princípio filosófico da busca pela verdade, chamado de redução eidética, era o que muitos entendiam como objetividade ou imparcialidade. Na cartilha de qualquer jornalista com diploma essas palavras constam, por mais utópica que soem, como essência da profissão.


No entanto, sempre houve quem dissesse que informar é pouco, imparcialidade não existe e objetividade pode significar irresponsabilidade. Essas e outras controvérsias foram discutidas entre 21 e 23 de junho no Fórum Mundial da Mídia (Global Media Forum), organizado pela Deutsche Welle em Bonn, na Alemanha.


O encontro havia sido pensado para gerar oportunidades de reflexão aos profissionais da mídia. Este ano teve como foco principal um tema que ainda será moda em várias estações: a mudança climática do planeta. Apesar da extensa lista de profissionais da mídia inscritos e convidados de todos os continentes, o fórum corria o risco de se tornar uma continuação do encontro de Copenhague e palco de lobistas da indústria de energia renovável, fundações e centros de pesquisas ambientais e climáticas.


Mudanças positivas para a espécie humana


O diretor-geral da Deutsche Welle, Erik Bettermann, contou logo na abertura o que se deveria esperar do evento: debates sobre como a mídia deve abordar o tema do aquecimento global ‘para alertar sobre um dos maiores temas da atualidade.’ Bettermann afirmou que não basta à imprensa simplesmente abordar o assunto. ‘É preciso levar as pessoas à ação, mostrando-lhes problemas, soluções e diferentes perspectivas, e também oferecendo-lhes esperança.’


Ainda na cerimônia de abertura, o francês Bertrand Piccard aproveitou o embalo. ‘É seu trabalho motivar as pessoas; informar não é mais suficiente’, disse aos profissionais da mídia presentes. Piccard é pioneiro da aviação solar e quer colocar ainda este ano nos céus um avião capaz de voar à noite com energia solar armazenada durante o dia. Piccard argumentou que ‘investir em energias renováveis pode ser mais vantajoso que investir na bolsa’ e defendeu: ‘Em vez de falar de problemas e custos, devemos falar de soluções e lucros.’


Ao longo dos três dias, o Fórum Mundial da Mídia ofereceu dezenas de discussões. Uma delas tematizou justamente esse dilema, contrapondo a objetividade e imparcialidade da tradicional escola jornalística à corrente da media advocacy. Segundo o Public Media Center, com sede em São Francisco, o objetivo da media advocacy é dar o pontapé inicial a reações em cadeia, informando pequenos grupos de pessoas que ‘se envolverão e farão a diferença’. Apesar das eventuais boas intenções por trás da teoria, é fácil interpretá-la como uso de informação para persuadir ou manipular um público-alvo.


Nessa discussão, o pesquisador alemão Hans Peter Peters citou um estudo segundo o qual a maioria dos jornalistas alemães rejeita o papel de educadores. Para eles, sua função é simplesmente informar o público. Peters disse discordar em parte dessa maioria.


A justificativa de Peters é que o material produzido pela imprensa não é apenas fonte de informação, mas também de conteúdo cultural e científico – por isso, ocasiona mudanças sociais. Portanto, o pesquisador insiste que cabe ao jornalista, sim, abandonar a imparcialidade em determinados casos e promover mudanças positivas para a espécie humana e para o meio ambiente.


Opinião restrita a análises explícitas


Em tempo, a jornalista escocesa Irene Quaile, outra das quatro pessoas participantes do debate, interveio: ‘Defender ou promover determinados assuntos é o que advogados, profissionais de Relações Públicas, marketing, ONGs e grupos lobísticos fazem. Nós, da imprensa, fazemos a cobertura dos fatos.’


Irene Quaile é funcionária da Deutsche Welle desde a década de 1990. No currículo da jornalista especializada em questões ambientais e climáticas constam pós-doutorado pela St. Andrews University e passagem pelas rádios BBC e ABC Radio National, bem como a conquista de prêmios como o New York International Radio Festivals gold award e o United Nations Award.


Em Bonn, Quaile enfatizou a importância da distinção entre reportagem, análise e comentário. ‘Independentemente do assunto, a reportagem deve ser feita sem a distorção dos fatos; a opinião do jornalista fica restrita às análises ou aos comentários explícitos’, defendeu.


Objetividade e justiça


Alexander Kirby, antigo repórter online, de rádio e de TV da BBC News, também defendeu os princípios tradicionais do jornalismo. Além de comparar a intenção de ‘educar’ com pregação religiosa, Kirby disse que a imprensa nunca deve abrir mão do ceticismo nem dar os argumentos de um tema por esgotados.


Quaile também falou desse ‘ceticismo saudável’ e frisou a importância de se contextualizar as reportagens. ‘Não devemos comentar ou nos posicionarmos em um dos lados da história, mas fornecer as informações necessárias para que o público possa entendê-la’, explicou. Em seguida, a escocesa alertou: ‘Temos que ser justos ao informarmos esses dois lados.’ De acordo com ela, em alguns casos, a dedicação do mesmo espaço ou tempo a ambos os lados da história pode distorcer a realidade.


Eis um exemplo dado pela própria Irene: ‘Consideremos que 99% da comunidade científica concorde que esteja acontecendo uma mudança climática e que isso acarretará várias consequências para nós, humanos. Se você decide fazer uma matéria opondo esses cientistas aos céticos dando 50% do espaço para os 99% e 50% para os céticos, não acho que você esteja sendo justo. Fazendo isso, você distorce a realidade, sugerindo que 50% dos cientistas não acreditam que uma mudança climática esteja ocorrendo.’


Em outro workshop do Fórum Mundial da Mídia, uma jovem colega quis saber o que fazer quando a objetividade se torna inalcançável, como na cobertura de uma catástrofe. John Pope, que cobriu o furacão Katrina em 2005 para o Times-Picayune, de New Orleans, respondeu: ‘Neste caso, esqueça a objetividade. Lute por justiça.’

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Jornalista