Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A globalização da ética de imprensa

O fechamento do tabloide inglês The News of the World, que vendia 2,6 milhões de exemplares, deu a largada para a principal discussão sobre ética de imprensa no mundo globalizado. A partir de agora está claríssimo: a conduta dos órgãos encarregados de informar a sociedade é uma pauta supranacional. Não é apenas o capital que viaja em segundos de um continente para outro. Não são apenas as massas trabalhadoras que migram clandestinamente para disputar empregos em terras estrangeiras. Não é apenas a indústria da diversão que alcança simultaneamente os olhares de povos distantes entre si. Agora ficou evidente: a credibilidade dos órgãos jornalísticos não é meramente um assunto doméstico, ela floresce e sucumbe na arena global.

Já veremos por quê. Antes façamos uma recapitulação sumária do que se passou.

Esse jornal, The News of the World, tinha 168 anos de idade. Desde 1969 pertencia à News Corporation, o megaconglomerado internacional, com faturamento na casa dos US$ 33 bilhões ao ano, controlado pelo australiano Rupert Murdoch. Vivia de bisbilhotagem, luxúria e algum sangue. Vivia muito bem, apesar do lento declínio em circulação, que vinha de décadas. Sua fórmula editorial ia dos aposentos da família real em Londres às estripulias transoceânicas dos astros do show business, passando por bestialidades a granel.

Há poucos anos, seus métodos “jornalísticos” passaram a ser contestados. No site da Press Complaints Commission – instituição encarregada da autorregulamentação da imprensa britânica – há queixas de escutas clandestinas contra ele. Na esfera policial também houve investigações. Um jornalista do News of the World, Clive Goodman, chegou a ser preso em 2007.

Agência de arapongas

Tudo isso não é novo, portanto. Mas até então se acreditava que os crimes registrados eram desvios individuais, casos isolados, como se diz. Agora se viu que não. Os crimes são mais sérios e muito mais numerosos. Segundo apontam as investigações, seriam mais de 4 mil os telefones grampeados pelo jornal. Estamos falando, portanto, da industrialização do grampo. Gerenciar milhares de escutas clandestinas é uma operação de monta: requer equipes treinadas, orçamentos bem planejados, estruturas próprias. Os inquéritos vão dando conta de que o News não era uma redação jornalística – era uma agência de arapongas assalariados.

Descobriu-se mais. Além de grampear celebridades – o que já constitui uma ilegalidade inaceitável, que se situa fora do campo do jornalismo –, o jornal teria invadido celulares de pessoas comuns, que não dependem do estrelato para inflar seus cachês. Grampeou parentes de soldados mortos. Grampeou até a adolescente Milly Dowler. A garota estava desaparecida – soube-se depois que já tinha sido assassinada – quando detetives contratados pelo News apagaram mensagens de seu celular, o que causou nos familiares a impressão de que ela ainda estava viva. Com isso o caso ganhou uma sobrevida – e, em consequência, a cobertura do caso, liderada pelo News of the World, também ganhou sobrevida. Lucrativa.

Essas revelações estarreceram a Inglaterra. O tabloide era um serial killer da privacidade de gente comum. Anunciantes caíram fora. Os protestos se generalizaram. Murdoch fechou o semanário, na tentativa de estancar a sangria de reputação e de salvar um objetivo maior: ele queria comprar a totalidade da BSkyB, um poderoso grupo de canais a cabo do qual já é sócio. A tentativa não deu certo. O quadro só se complicou. Andy Coulson, ex-diretor do News of the World e porta-voz de David Cameron, o primeiro-ministro britânico, até janeiro de 2011, foi preso na sexta-feira passada. Só foi liberado sob fiança. O ex-primeiro ministro Gordon Brown diz que também foi grampeado. A crise do tabloide virou uma crise no Parlamento. Políticos de correntes várias passaram a contestar em público as pretensões do dono da News Corp., a tal ponto que, ontem mesmo, Murdoch anunciou que desistiu da compra da BSkyB. Ele está acuado. Na Inglaterra e no mundo.

O Watergate de Murdoch

Aí é que entram as razões da internacionalização desse debate. O escândalo dos grampos virou notícia no mundo todo porque o conglomerado de Murdoch está no mundo todo – e se ele faz por aí o que parece ter feito em Londres, isso diz respeito a todos nós. Ontem pela manhã a Rádio CBN noticiou em primeira mão no Brasil que o senador democrata Jay Rockefeller pretende investigar o grupo de Murdoch nos Estados Unidos. Um dos jornais que mais se destacaram na cobertura dos bueiros da News Corp. – depois do diário inglês The Guardian – é o americano The New York Times, que vem sofrendo uma concorrência frontal do Wall Street Journal, comprado, em 2007, por ninguém menos que Murdoch. Na Newsweek desta semana, o jornalista Carl Bernstein – autor, ao lado de Bob Woodward, da série de reportagens sobre o escândalo de Watergate, publicadas no Washington Post, que levaram a renúncia de Richard Nixon, em 1974 – lança a pergunta que só ele pode fazer: será que esse escândalo não é o Watergate de Murdoch?

O sentimento geral foi bem sintetizado pela revista The Economist de quinta passada: “Se ficar provado que os diretores da News Corporation agiram contra a lei, eles não deveriam mais comandar nenhum jornal ou estação de TV. Deveriam estar na cadeia”. Isso vale para qualquer país. No mundo de hoje, as práticas dos tabloides ingleses viraram tema do interesse público internacional.

Sim, isso mesmo. Existe um interesse público internacional, ainda que difuso, rarefeito, pouco institucionalizado. Não são apenas o capitalismo selvagem e a especulação financeira que rasgam fronteiras. As preocupações humanitárias em geral e a ética jornalística em particular também se globalizam como valores universais. É a isso que Murdoch terá de prestar contas. E com isso ele talvez não contasse.

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[Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM]