Naturalmente, dia após dia, as páginas e minutos dos veículos de imprensa são preenchidos com questões econômicas sensíveis ao futuro do país. São pautas que demandam atenção e seriedade dos agentes públicos e também dos meios de comunicação que se dispõem a fazer uma cobertura sobre tais assuntos. Questões como a privatização de empresas estatais, o orçamento anual da União, reformas que mexem fortemente com os direitos de classes desfavorecidas — neste momento, mais de 14 milhões de pessoas estão desempregadas — em nome de um suposto equilíbrio econômico…Considerando que estamos sendo governados por um grupo que quer flertar com o liberalismo, mesmo com seus vícios de controle absoluto sobre tudo, o espectro das reformas e privatizações sempre ronda o noticiário.
A questão a ser discutida é: de que maneira esses assuntos tão sensíveis são apresentados para o público? Mesmo com o baque que é a atuação nas redes sociais das forças políticas reacionárias, que não dependem mais da imprensa para divulgarem seus projetos de destruição, a mídia ainda cumpre um importante papel no debate público ao, entre muitas aspas, se posicionar de maneira sensata e ponderada sobre tais pautas. Aí é que mora o perigo: a mansidão da voz de um banqueiro entrevistado pelo Jornal Nacional contrasta muito com o tom tosco e grosseiro de quem ocupa a cadeira presidencial hoje em dia, mas ambos defendem o mesmo jeito de acabar com empresas públicas de importância imensurável para o país, como os Correios.
Ora, todo mundo que já procurou sabe que existem economistas experientes e qualificados que podem trazer reflexões sensatas e fundadas sobre o desastre que seria a venda de uma das maiores empresas de logística do mundo, baseadas inclusive em precedentes bem nacionais. Porém, os jornais hegemônicos insistem em contrapor os economistas liberais, que falam sobre a quebra de um monopólio de encomendas que absolutamente não existe, com lideranças sindicais. Não entenda errado, as lideranças sindicais são importantíssimas e certamente cumprem seu papel na defesa dos Correios, mas o que fica na cabeça de muitas pessoas é um debate de ideias onde uma pessoa inteligente e engravatada defende o futuro da economia nacional e velocidade na chegada das suas comprinhas virtuais está contra alguém supostamente preocupado em garantir sua estabilidade de servidor público e outros direitos vistos como privilégio por pessoas que tiveram seus direitos arrancados e foram instruídas a achar isso normal.
O mais do mesmo
Na mesma toada, muita gente passou a assimilar a ideia de que cuidar do orçamento de um país é como cuidar do orçamento da sua casa, onde a regra principal e quase única é gastar menos do que se ganha para garantir uma estabilidade e não depender de créditos e empréstimos que podem te colocar em maus lençóis. Essa conversa ganhou mais força principalmente depois que Michel Temer fez da aprovação das reformas a principal bandeira de seu governo que carecia de legitimidade. Onde estavam as vozes dissonantes? Nos veículos do grupo Globo, no Estadão e na Folha, o espaço era hegemonicamente ocupado por pessoas apresentadas como qualificadas defendendo que não se aumente os gastos públicos para assuntos importantes como saúde e educação por décadas em nome de um equilíbrio fiscal abstrato, quando contrapostos, apenas por alguns segundos ou linhas de parlamentares de esquerda, num momento em que a classe política nunca esteve tão pouco prestigiada.
Enquanto posam de modernas e antenadas, no alto de suas supostas virtudes, essas fontes apenas replicam ideias antigas que nunca apresentaram bons resultados para o Brasil — sem paralelo em nenhum outro país, no mundo. Se, durante a ditadura militar, Delfim Netto disse que era necessário primeiro crescer o bolo para depois reparti-lo, isto é, deixar os ricos mais ricos para posteriormente trabalhar em distribuição de renda, hoje a mudança apenas está no rebuscamento das palavras. Quando algum banqueiro entojado fala em desburocratizar a vida de um empresário, o que parece bom à primeira vista, ele está falando em retirar direitos conquistados pelos trabalhadores que os garantem alguma dignidade na relação patrão-trabalhador.
A maneira que a grande mídia deslegitima as vozes dissonantes é sutil, mas poderosa. A maioria das pessoas termina de assistir um telejornal crente de que é necessário e urgente um grande plano de privatizações. Nem a pandemia passa impune: apesar dos veículos citados nesse texto fazerem um trabalho até decente no incentivo à vacinação e medidas básicas de prevenção, a ideia de um novo auxílio emergencial com valor maior ou até um auxílio permanente é rechaçada na primeira palavra dos palpiteiros convidados da vez.
Isso traz à tona uma reflexão sobre qual é o papel do jornalismo no debate público, especialmente seu compromisso com a defesa da sociedade democrática, com a qualidade de vida das pessoas. É inocência acreditar naquela imparcialidade defendida nos antigos manuais sobre a profissão: cada vírgula escolhida diz alguma coisa sobre as opiniões editoriais ou motivações do veículo de imprensa. Porém, quem não se define claramente para o público deveria pelo menos tentar igualar o debate, mesmo que dentro de suas condições. É infrutífero esperarmos um líder de uma organização revolucionária tendo voz em horário nobre na televisão, mas existem muitas pessoas da esquerda dentro do que é considerado democrático para a grande mídia dispostas a falar e defender as pautas progressistas. Falta vontade, e honestidade para deixar realmente claro quais são os interesses desses veículos, propriedades de oligarquias que nada têm a ver com o povo.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
***
João Paulo Mallmann é mestrando do PPGJor/UFSC e pesquisador do objETHOS.