Para ganhar cada vez mais poder na Argentina, a presidente Cristina Kirchner segue a cartilha do marido e antecessor, Néstor Kirchner: criar inimigos e vencê-los. A estratégia já havia dividido o país, mas agora o casal radicalizou com ataques aos meios de comunicação e com a tentativa de levar à prisão os diretores dos dois principais jornais do país, Clarín e La Nación.
O governo entrou com ação no Tribunal Federal, em 21 de setembro, acusando os empresários de serem ‘participantes necessários’ da tortura e da extorsão de Lidia Papaleo. Ela é viúva de David Graiver, ex-proprietário da fábrica de papel ‘Papel Prensa’, a mais importante do país. Lidia teria sido forçada a vender a fábrica durante a última ditadura militar argentina. Após a morte de Graiver em um misterioso acidente de avião no México, em agosto de 1976, a empresa foi adquirida pelos dois jornais e pelo governo do general Jorge Videla, autor de um golpe em março daquele ano. Assim, o diretor-executivo do Grupo Clarín, Hector Magnetto, a diretora do jornal Clarín, Ernestina Herrera de Noble, e o diretor do La Nación, Bartolomé Mitre, são acusados de ‘apropriação ilegal’ da empresa.
A denúncia afirma, além disso, que teria havido ‘cuidadosa preparação mediática’, pelo Clarín e La Nación, para obter ‘controle da imprensa escrita em todo o território nacional’. No mesmo processo, Videla e seu ministro da Economia, José Martinez de Hoz, são acusados de autoria e coautoria dos crimes alegados contra Lidia Papaleo. Videla e Martinez de Hoz já haviam sido presos por crime de direitos humanos. A acusação se baseia no depoimento da viúva, incluído na ação. Em uma declaração, Lidia diz: ‘Todo o horror que foi minha vida depois do meu sequestro é indescritível, pela série de perversões, vexações e tormentos a que fui submetida. (…) Prefiro ver os olhos e a cara dos meus torturadores do que ver os olhos de Magnetto no momento em que me ameaçava para que eu assinasse.’
‘Para qualquer inimigo político se inventa um crime contra a humanidade’
A ação pede inquirição imediata dos diretores dos jornais, sob pena de prisão. Em entrevista ao Financial Times londrino, Magnetto acusou o governo de vingança pessoal e de que estaria se aproveitando da questão dos direitos humanos. Em outra ocasião, disse que o governo é ‘capaz de tudo’. ‘Agora querem inventar um delito contra a humanidade pela compra de uma empresa oferecida pelos seus donos.’
Para apresentar o processo ao país, pela TV, Cristina reuniu seu grupo político, de ministros a sindicalistas, na Quinta de Olivos, a residência presidencial. Ao lado de Lidia, fez um discurso aguçado, como é de costume. Tocando em um tema ainda hoje sensível na Argentina – há 30 mil mortos e desaparecidos da última ditadura (1976-1983) –, a presidente buscou dividir a população e levantou um caso cheio de contradições. ‘Tivemos que nos envolver não para controlar ninguém, mas sim, para que [os jornais] deixem de controlar os argentinos.’
Depois do pronunciamento da presidente, Osvaldo Papaleo, irmão da viúva, confirmou que houve tortura e extorsão para forçar a venda da Papel Prensa. Mas Isidoro Graiver, irmão do ex-proprietário, desmentiu essa versão. Em nota nos jornais, afirma que foi sequestrado e levado, em 15 de março de 1977, a um centro de detenção clandestino, onde Lidia já estava presa. ‘O contrato definitivo da venda das ações que possuíamos na Papel Prensa foi assinado em 2 de novembro de 1976’, diz ele. ‘A simples comparação das datas me exime de qualquer comentário.’
Também em nota pública, María Sol, filha de Lidia e David Graiver, disse que soube das acusações pelos jornais; que há três anos não se relaciona com a família da mãe e que não se envolverá no caso. Outro personagem, o ex-promotor Julio Strassera, diz que Lidia Papaleo – que ele conheceu durante o processo de julgamento dos governos militares, em 1985 – jamais mencionou qualquer vínculo entre a venda da fábrica e as torturas. ‘Para qualquer inimigo político se inventa um crime contra a humanidade, ou uma relação com a ditadura’, disparou.
Acabar com os monopólios
Os empresários Magnetto e Mitre apresentaram à Justiça documentos que confirmariam a legalidade da compra da fábrica e se disponibilizaram a participar da investigação. Mas isso tudo é apenas metade da tensão. Além da ofensiva legal, com acusações dessa gravidade, Cristina também enviou ao Congresso um projeto de lei para regulamentar a venda de papel-jornal no país, declarando que era produto de interesse nacional. O governo argumenta que existe um monopólio no setor que permitiria que os principais acionistas da Papel Prensa – Clarín e La Nación – inflacionassem o mercado e controlassem os demais jornais. O projeto de lei também prevê a intervenção e o controle estatal na empresa.
Ao mesmo tempo, Cristina abriu fogo contra a Corte Suprema, denunciando parcialidade em julgamentos e favorecimento de interesses particulares. Também acusa juízes da Corte de manter encontros com diretores do Clarín. Após pareceres recentes desfavoráveis, reclamou da demora em decisões sensíveis para o kirchnerismo. Num caso, a Corte manteve, por medida cautelar, a concessão da provedora de internet Fibertel, pertencente ao Grupo Clarín. Noutro caso, restituiu o procurador da província de Santa Cruz, Eduardo Sosa, afastado por Néstor Kirchner quando era governador. Também mantém em análise a intervenção estatal na Papel Prensa e os amplos poderes outorgados pelo Legislativo ao Executivo, interditados por recurso. Em outubro, a Corte manteve a suspensão, concedida em primeira instância, do artigo 161 da Lei de Meios Audiovisuais. Com isso, o máximo tribunal acata a apelação do Grupo Clarín e deixa paralisado o ponto-chave da norma, que ordenava que meios de comunicação vendessem várias de suas empresas em um prazo máximo de um ano.
Agora, a Justiça tem até dois anos para encerrar o processo – prazo ao final do qual haverá um novo presidente. A lei foi enviada pelo governo e aprovada no Congresso em outubro de 2009, por ampla maioria. O governo argumenta que busca democratizar os meios de comunicação e acabar com os monopólios. A lei é ampla. Cria uma quota máxima de participação acionária nas empresas de comunicação e autoriza o Estado a administrar, operar, desenvolver e explorar os serviços de radiodifusão sonora e televisiva.
Reestatização de setores privatizados
O texto tem como objetivo modificar concessões e, claramente, reduzir o poder do Grupo Clarín, que atua em todo o país e é dono de jornais, rádios, revistas, editoras, agências de notícias, canais de televisão aberta e a cabo, provedores de internet, empresas de TV por assinatura, gráficas, produtoras de televisão, sites, geradoras de conteúdos online e empresas de exposições, feiras e eventos. O grupo é o maior acionista da Papel Prensa.
No campo político, Cristina e Néstor Kirchner responsabilizam o Clarín, por exemplo, pela perda das eleições legislativas de 2009. Kirchner foi o segundo deputado mais votado, mas perdeu poder e espaço no Congresso e no Partido Justicialista/Peronista (PJ), do qual era presidente. O modelo de construção e enraizamento de poder adotado pelos Kirchner costuma ser comparado com o apoio dos muito pobres ao ex-presidente Juan Perón, ou com o radicalismo e o populismo do venezuelano Hugo Chávez. Mas o que se vê hoje na Argentina não encontra precedentes em sua história, explica o diretor do Instituto de Planejamento Estratégico, Jorge Castro. Nem tem semelhanças no continente. ‘É um fenômeno próprio da Argentina, que termina por isolar o país internacionalmente.’
Néstor governou o país de 2003 a 2007 e, depois de passar o cargo à mulher, governou nos bastidores. Era claramente candidato a reassumir a presidência, concorrendo às eleições de 2011. Era também secretário da União de Nações Sul-americanas (Unasul), posição que lhe dava enorme projeção política. Para Castro, ele era o eixo do sistema político argentino. ‘Considerava o conflito com oClarín sua principal bandeira e condição essencial para uma vitória nas eleições presidenciais.’ Néstor sabia que era preciso superar o morno apoio da população, pois chegou à Casa Rosada com apenas 23% dos votos – o ex-presidente e atual senador Carlos Menem, também peronista, terminou o primeiro turno na frente, mas abandonou a disputa. ‘Havia um esvaziamento de poder e era preciso ganhar espaço’, diz Castro. ‘A estratégia vinha dando certo. O problema é quando se perde, e foi isso que aconteceu, há dois anos, na ofensiva de Cristina contra o setor agropecuário.’
O casal já havia enfrentado as Forças Armadas, anulando as leis que anistiavam os militares acusados de tortura e reabrindo os processos por crime contra a humanidade. Houve apoio imediato da sociedade e de organizações de direitos humanos. O governo também reestatizou os Correios, a empresa nacional de água e saneamento, a companhia aérea Aerolineas e todo o setor de pensões e aposentadorias – setores privatizados nos anos Menem, sob denúncias de fraude, na época.
Apenas 18,4% acreditam na versão do governo
Com isso, engordou-se a receita pública, mas os recursos não estariam sendo usados como imagina parte muito importante dos empresários, que reclamam da falta de fomento ao crescimento do setor e de crédito para investimento. O governo alega que o agronegócio inflaciona o preço dos alimentos, principalmente o da carne, importantíssima no cardápio argentino. Isso dito, aumentou o imposto sobre a exportação por decreto, restringiu as vendas externas e tabelou os preços internos. A sociedade foi às ruas fazer panelaços, a favor e contra. O país quase parou, num clima de tensão. O governo, então, cedeu e trocou o decreto por projeto de lei enviado ao Congresso. Em votação histórica, entrando pela madrugada, o próprio vice-presidente – e presidente do Congresso, Júlio Cobos, do partido União Cívica Radical (UCR) – desempatou, votando contra o imposto. Cobos tornou-se um novo adversário do governo e virtual candidato às próximas eleições.
Depois disso, o casal começou a perder força política e apoio dos argentinos. Mas foi em frente. A Corte Suprema teve 40% do seu orçamento para 2011 cortado. Trata-se de um ponto crucial, diz o diretor do Centro de Estudos União para a Nova Maioria, o analista político Rosendo Fraga. ‘A escalada da briga com a Corte gera o conflito institucional mais grave desde o restabelecimento da democracia, em 1983.’ Para ele, o modelo kirchnerista, nesse e em outros casos, se parece ao de Hugo Chávez. Há semelhança também na querela com os meios de comunicação e no manejo e controle das ruas por militantes. Para o analista, o conflito é um traço de personalidade dos Kirchner, mais do que uma ideologia. Na campanha à presidência, devido à sua forte personalidade, Cristina tinha alto nível de rejeição.
Na época, analistas avaliavam que, mesmo com a bonança econômica e uma votação de 43,9%, ela teria dificuldades para aprovar leis no Congresso e manter respaldo popular. Por isso, ela muitas vezes recorreu a decretos, driblando o Legislativo. Agora, no avanço contra o Clarín e La Nación, apenas 18,4% acreditam na versão do governo. Grande parte acha que a família Graiver diz a verdade. Mais da metade dos argentinos pensa que o objetivo é controlar a imprensa.
O direito de não saber as verdadeiras identidades
A imagem positiva do casal caiu de 35% para 30%. Além disso, uniu a oposição mais uma vez. ‘Estamos juntos e consideramos que o relatório é uma mentira inventada’, disse a presidente da Coalizão Cívica, a deputada federal Elisa Carrió. Uma das maiores adversárias dos Kirchner, Elisa diz que ‘eles estão decididos a suprimir a imprensa e perseguir os opositores. Nós estamos dispostos a defender a imprensa livre e crítica’. Deputado federal do PJ dissidente, o empresário Francisco de Narvaez disse que o Executivo tenta calar a boca dos que pensam diferente dele. ‘Existe um limite e o kirchnerismo avançou sobre a propriedade privada e sobre a liberdade de imprensa.’ O ex-chefe de gabinete de Néstor e Cristina, Alberto Fernández, não aprova as críticas à Corte Suprema durante atos políticos. ‘Isso não é bom para a qualidade institucional da Argentina.’
Entretanto, o governo mantém amizade com o secretário da Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), Hugo Moyano. É dele que a Casa Rosada lança mão sempre que precisa de alguma grande mobilização. Agora, por exemplo, os caminhoneiros bloquearam a saída da gráfica para impedir que os jornais circulem. No confronto com o agronegócio, um conjunto variado de trabalhadores tomou o centro de Buenos Aires em uma grande caminhada de apoio ao governo. Há disputa com a imprensa em vários países, mas na Argentina a tensão é bem maior. O canal de televisão do Clarín, o principal do país, já perdeu a exclusividade da transmissão de futebol.
E em maio passado o governo conseguiu que a polícia desse uma batida de busca e apreensão na casa da família de Ernestina Herrera de Noble, diretora do Clarín. A ação envolve a denúncia de que os filhos adotivos da empresária seriam dois dos muitos filhos de desaparecidos – alega-se que muitas crianças foram roubadas dos pais nos porões da ditadura e distribuídas entre as famílias de aliados do regime. Na batida contra os Herrera de Noble, os dois filhos adotivos, hoje com mais de 30 anos, foram obrigados a entregar as suas roupas para análise de DNA. A ação é apoiada pela organização Avós da Praça de Maio, que já identificou 102 filhos de desaparecidos – muitos devolvidos às verdadeiras famílias.
Ernestina admitiu em 2003 que Marcela e Felipe podem ser filhos de desaparecidos, mas nega saber a origem deles. Ambos defendem o direito de não saber suas verdadeiras identidades e em comunicado pediram ao governo e às Avós que não digam o que eles têm que fazer.
Querela deve esquentar ainda mais
A tensão com os meios de comunicação é mudança recente na política argentina. Néstor teve apoio da imprensa, em seu mandato, e Cristina só o perdeu depois de enfrentar o agronegócio. Daí em diante, a imprensa começou a reclamar que era pressionada pela Casa Rosada através das quotas de publicidade oficial distribuídas às diversas mídias. A disputa ganhou os microfones oficiais, as manchetes dos jornais e os programas de televisão. Virou tema de programas de humor uma pergunta feita por Néstor em um discurso: ‘¿Qué te pasa, Clarín, estás nervioso?’ (O que você tem, Clarín, está nervoso?).
Daqui até as eleições, a querela entre o kirchnerismo e os principais meios de comunicação deve esquentar ainda mais. O rumo da política argentina dependerá, em parte, das decisões que a Corte Suprema tomar. E também de a oposição saber ou não capitalizar esse conflito para ganhar espaço na campanha presidencial.
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Jornalista