Ao insistir no ‘anti-lulismo’, os jornalões correm o risco de municiarem o governo de argumentos. Recentemente, a Folha publicou que Dilma e Serra estão ‘tecnicamente empatados’ nas últimas pesquisas eleitorais espontâneas, quando na verdade Dilma ultrapassou Serra. Mas O Globo (on-line) se superou, e publicou no dia 11.02.10:
‘Lula não faz mais que FH na reforma agrária.
Os dois governos assentaram quase o mesmo número de famílias. Foram 540.704 entre 1995 e 2002 (gestão FH) e 574.609 entre 2003 e 2009.’
Ora, desde quando 540 mil são iguais a 574 mil? 34 mil famílias correspondem a um número significativo de pessoas que conquistaram a posse da terra. Isso para não dizer que os conflitos violentos no campo diminuíram consideravelmente de um governo para o outro.
A atual guerra da mídia contra o governo (ou seria mesmo contra Lula?) evidencia que a lição de 2006 não foi assimilada pelos grandes meios de comunicação. Relembremos: naquele ano, o segundo turno entre Lula e Alckmin se deu após intenso bombardeio, sobretudo do Jornal Nacional, usando do ‘mensalão’ e, sobretudo, do dinheiro apreendido pela Polícia Federal com pessoal da campanha de Aloísio Mercadante na disputa pelo governo de São Paulo. Foi o escândalo do ‘dossiê’, a apreensão de 1,7 milhão de dólares que seria utilizado na compra de documentos que supostamente incriminariam membros do PSDB, principal rival do PT.
Desempenho aquém do esperado
Diante da superexposição dos dólares nos telejornais, através de uma fotografia anônima do dinheiro empilhado e armazenado na PF – foto mostrada em primeira mão no Jornal Nacional –, Lula não venceu a eleição no primeiro turno, ficando com 48,6% (46,6 milhões do votos válidos) contra 41,64% (39,9 milhões) dos votos de seu adversário. O resultado contrariou todas as pesquisas que apontavam uma vantagem para Lula e os escândalos e a carga da Globo foram apontados como os principais responsáveis pelo viés. Mas a exposição dos dólares na grande mídia foi de um movimento um tanto orquestrado, um ‘complô da mídia’, como denominou então a revista CartaCapital.
Um delegado da PF, simpatizante do candidato da oposição, fez e divulgou a tal fotografia. O delegado manteve um encontro com jornalistas ligado a veículos como a TV Globo e os jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, os três maiores do país, e propôs a eles o ‘vazamento’ da fotografia, mas frisou: ‘Tem de sair hoje à noite na TV. Tem de sair no Jornal Nacional‘ [grifo meu]. Sua atitude, paradoxalmente, veio a público no blog pessoal de um ex-jornalista da própria Globo, Luiz Carlos Azenha, que tinha a gravação da conversa do delegado com jornalistas e a veiculou na íntegra na internet, demonstrando que os jornalistas que atuam no âmbito da grande mídia não endossam necessariamente a postura de seus editores.
O resultado, todos sabemos: Alckmin conseguiu um feito inédito na história de eleições do Brasil: obteve menos votos do que os que alcançara no primeiro turno (39,9 milhões), terminando a disputa com 37,5 milhões. Aqui está a questão principal: o desempenho aquém do esperado de Geraldo Alckmin se deu mesmo contando com apoio e a simpatia da mídia. Uma pesquisa da revista CartaCapital publicada logo após a eleição demonstrou um fato ainda mais curioso: a audiência do Jornal Nacional não caiu durante o segundo turno. A assistência manteve-se, e mesmo aumentou, nas mesmas ‘classes sociais’ que consolidaram a vitória de Lula (C, D e E). Como explicar isso?
A manipulação do Fantástico
Em 2002, Lula vencera as eleições, num ‘acontecimento’ que, para Suely Rolnik, demonstrou o deslocamento da maioria da população, que até então via Lula e a si mesma como ‘subjetividade-lixo’, para outro campo, o da ‘subjetividade-luxo’. Devemos à filósofa outra brilhante análise das subjetividades do ‘acontecimento Lula’ em 2002 que possibilitam compreender o fracasso da manipulação da mídia em 2006. A citação é longa, mas pertinente:
‘Desde a primeira candidatura de Lula (…) até sua terceira candidatura para a presidência da República, (…) para a grande maioria ele era visto com desprezo: `Sapo barbudo´ é o nome que lhe deram na época. Vigora naquele momento a aceitação passiva e naturalizada do lugar de lixo e, portanto, o auto-desprezo, que tornam impensável a quebra da hierarquia segundo a qual os habitantes da cloaca não têm competência para ocupar um lugar de comando do país. (…) No segundo turno [em 2002], a força de contaminação do modo de presença de Lula desloca mais rapidamente a cena. O sentimento da maioria dá mais um passo na ruptura, `Ele é como nós´ e, apesar disso, conseguiu perder o medo de ser humilhado como subjetividade-lixo; ele se autoriza uma fala imanente às sensações que se produzem no encontro vivo com a alteridade e sabe de seu valor. Esta política de subjetivação propaga-se por todo o campo social: dissolve-se o medo, uma fala viva começa a circular e uma inteligência coletiva se põe em movimento. (…) Um momento histórico significativo, não só pela alegria de uma vitória da esquerda, especialmente por se tratar de um candidato que reúne várias categorias de subjetividade-lixo: de operário metalúrgico a retirante nordestino, imigrante, morador da periferia de São Paulo, passando por deficiente físico, a quem falta um dedo (…) e, para completar, fala português `errado´. Este é apenas o aspecto mais visível e óbvio desta alegria, para não dizer ingênuo e, pior do que isso, perigoso, pois pode confundir-se com esperança, afeto triste que alimenta messianismos, populismos e toda espécie de ideal de um mundo fusional sem diferença e, portanto, sem crueldade sem resistência, sem criação, sem vida. Vital, mesmo, é a alegria pelo esvaziamento do inconsciente colonial-escravocrata-ditatorial-capitalístico que mantém os brasileiros reféns de uma hierarquia que os fixa na posição de subjetividade-lixo, vítimas de um suposto destino transcendental’ (artigo ‘O ocaso da vítima para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência’, in Lins, Daniel e Pelbart, Peter Pál, orgs., 2004, Nietzsche e Deleuze. Bárbaros, Civilizados, São Paulo, Anna Blume).
Ao contrário do que pensam os editores dos jornalões, o público geral não tem a mesma capacidade de discernimento que Homer Simpson. Se ao longo dos anos e das eleições não mudou a mídia, mudou o que Chomsky, em A Manipulação dos Media. Os efeitos extraordinários da propaganda (Lisboa, Editorial Inquérito, 2002) chamava de ‘rebanho tolo’, que mais de uma vez demonstrou não se deixar levar pela manipulação, sobretudo nos tempos ‘pós-Collor’. Quem esqueceu a manipulação que a Rede Globo fez do debate Collor x Lula, em 1989?
******
Jornalista, historiador e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal