Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A guerra dos ventiladores

O lançamento de Veja, em 1968, representou não apenas um amadurecimento profissional do nosso jornalismo semanal com também um importante passo no desenvolvimento da própria imprensa brasileira. Completou-se o arco midiático que passou a dispor de todas as opções informativas – do flash instantâneo que os recursos da TV Globo começaram a oferecer a partir de 1965 ao noticiário mais referenciado dos jornais, agora acrescido da perspectiva semanal refinada.

Apareceram outros semanários – IstoÉ, CartaCapital, Época – e hoje, 36 anos depois, ao invés de um saldo positivo temos um quadro desolador e um segmento em processo avançado de desqualificação. Na direção contrária, os três grandes diários nacionais, no seu conjunto, representam um setor razoavelmente atento aos compromissos da imprensa com a sociedade.

Jornais também enfiaram-se no vicioso denuncismo e deram decisiva contribuição para a criação do jornalismo fiteiro. Foram os artífices da grampolândia, tão irresponsáveis quanto as revistas. Mais visíveis e mais vulneráveis, no entanto, aprenderam – ou foram obrigados a aprender – como comportar-se com mais compostura. Os escorregões são mais discretos.

Ainda é possível identificar nos grandes jornais as ‘matérias de favor’, as jogadas dos departamentos comerciais, predileções e apostas tanto das empresas como dos profissionais, sobretudo as deficiências noticiosas decorrentes de uma semana artificialmente encurtada. Mas nos seus contornos mais amplos o quadro do jornalismo diário está menos deteriorado.

Estilo de crítica

O rififi entre Veja e IstoÉ, começado no fim de semana de14-15/8 e levado ao paroxismo neste último (21-22/8), flagra um segmento em pleno processo de degradação.

Na qualidade de pioneira do jornalismo semanal moderno, Veja infelizmente também estabeleceu péssimos paradigmas. E IstoÉ, na condição de clone, repete-os integralmente. Nesta arena onde só aparecem vilões somos obrigados a testemunhar o deprimente espetáculo dos rotos engalfinhados com os esfarrapados.

Se Veja pertence a uma empresa rigorosa em matéria de separação entre publicidade e informação, iguala-se a IstoÉ em matéria de arrogância. Se Veja oferece aos leitores um painel de colunistas qualificados, seus ressentimentos e mesquinharias colocam-na no mesmo nível da principal concorrente. Se a revista da Editora Abril equipara-se em matéria de circulação às quatro maiores do mundo, sua forma selvagem de reagir às críticas e aos críticos colocam-na no mesmo patamar caudilhesco e provinciano da rival.

Foi na redação da Veja que inventou-se a técnica de induzir os entrevistados a dizer aquilo que o redator já colocara na matéria. Graças a ela a revista produziu um dos mais pitorescos vexames, o ‘Caso do Boimate’, transgênico que combinaria os atributos do boi com o tomate. O erro só foi assumido semanas depois, porque a infalibilidade olímpica dos chefes da redação não permitia o reconhecimento do deslize [conheça a história no Portal do Jornalismo Científico, em http://www.jornalismocientifico.com.br/
artigojornacientificowbuenoboimate.htm
)

Veja protegeu ao longo de duas décadas o ministro depois senador Antonio Carlos Magalhães oferecendo-lhe uma blindagem decisiva para a sua sobrevivência. Não significa que IstoÉ seja imune às empatias político-jornalísticas; as suas, porém, são rápidas, mutantes, como o atesta a admiração do hebdomadário pelo casal governador do estado do Rio de Janeiro.

O semanário da Abril também inovou no jornalismo literário. No meio do primeiro semestre era capaz de afirmar que o livro do apaniguado era o ‘livro do ano’ e que o autor ‘antipático’ deveria ser condenado ao eterno ostracismo. Este estilo mafioso de crítica literária, praticado com afinco ao longo de algumas décadas, acabou por produzir enormes distorções na própria literatura brasileira graças à formidável penetração do semanário. Não foi extirpado, embora os nomes no expediente da revista tenham sido trocados.

Leitores humilhados

Enquanto a concorrência entre os jornais processa-se através da diversidade de estilos, teores ou estratégias comerciais, a concorrência Veja vs. IstoÉ dá-se através de uma desvairada busca de semelhanças: não ousam diferenciar-se, imitam-se, repetem-se e juntas se desmoralizam.

Veja inventou o jornalismo de auto-ajuda com aquelas matérias de capa sobre corpo, saúde, mente e sexo – e IstoÉ foi na onda. Mesmo que Veja tenha mais recursos para investir o resultado é o mesmo: os assuntos mais importantes da semana são espremidos e os leitores de ambas são empurrados para a alienação.

Nesta semana exemplar, enquanto IstoÉ ataca pela enésima vez a ‘Síndrome do Pânico’, Veja investe pela undécima edição no ‘Poder Interior’. Resultado da similaridade: o jornalismo semanal foi transformado numa cultura de almanaque entremeada com mulheres seminuas e frases de efeito, semiburras.

Exemplo da atração fatal é o recente surto denuncista – responsável direto pelo surto autoritário do governo Lula. Iniciado irresponsavelmente pela IstoÉ, numa clara jogada contra a ala do ministro Antonio Palocci, teve a imediata adesão de Veja, em cujas páginas mais nobres chegou-se a afirmar que numa sociedade democrática é impossível defender a privacidade e a honorabilidade dos homens públicos.

O pivô da contenda foi o mea-culpa do repórter Luís Costa Pinto (ex-Veja) no qual reconhece seu erro na matéria que criou o clima para o massacre do então deputado Ibsen Pinheiro. A matéria que deveria ser um libelo contra o denuncismo irresponsável acabou transformada em peça emblemática do jornalismo denuncista: a retratação do jornalista foi publicada sem a sua autorização e, na acusação à concorrente, IstoÉ omitiu que na ocasião também embarcou na canoa furada do vazamento sem investigação.

Em compensação, a furibunda resposta de Veja é um modelo de linchamento midiático contra um repórter que ousou expor publicamente a sua falha. Ao invés de crucificá-lo, cabia-lhe incentivar este tipo de comportamento. É assim que se faz em ambientes civilizados [veja, nesta rubrica, o artigo ‘Mídia reivindica desimportância’].

A dupla exibição de impropérios e a idêntica falta de decoro, embora constrangedoras, são oportunas. Com ventiladores da mesma marca e igual disposição para distribuir a lama, fica evidente que está na hora de desmascarar este tipo de jornalismo: humilha os leitores, desmoraliza os anúncios que sustentam estas revistas e retira da imprensa a pouca credibilidade que lhe restou.