Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa alimenta radicalismos

A imprensa latino-americana ainda pensa em preto-e-branco, linearmente e em apenas duas dimensões. Lentamente, mas de forma inexorável, essa visão antiquada, mecanicista e principalmente irresponsável sobre o funcionamento do mundo mantém aquecidos na sociedade continental os ovos de duas serpentes que, historicamente, estão destinadas ao auto-aniquilamento. E com o triunfo suicida dessas duas serpentes corremos o risco de ver naufragarem importantes conquistas individuais e sociais, entre as quais a própria democracia.

A perspectiva resumida acima pode ser contraposta a esta outra, também válida: a imprensa latino-americana é antiquada, voltada para o passado, comprometida com forças políticas e econômicas que historicamente se opõem ao progresso social, mas a complexidade da sociedade contemporânea traz em si mesma uma energia que se impõe como um tsunami sobre todas as âncoras que tentam obstruir o processo evolutivo da história.

Na primeira visão, somos induzidos a acreditar e temer que de fato ocorre no continente uma ‘onda vermelha’ representada por governantes populistas, esquerdistas, nacionalistas, cuja ação ameaça isolar das grandes oportunidades globais os 36 países da região e seus 517 milhões de habitantes. O noticiário sobre a recente decisão do governo boliviano de nacionalizar suas reservas de gás, predominante na grande imprensa regional, nos induz a enxergar no horizonte o apocalipse do fundamentalismo indígena.

Na visão oposta, o processo de globalização, até aqui conduzido de maneira opressiva e irresponsável – observem-se as enormes dificuldades dos organismos multilaterais para fazer cumprir em tempo aceitável os protocolos de defesa da biodiversidade, da diversidade cultural e dos direitos fundamentais da sociedade civil nas atividades do capital internacional –, acaba provocando o fenômeno recente de ascensão de novos líderes nacionalistas. Ou seja, quanto mais agressivo e menos respeitoso em relação aos direitos dos povos, mais o capitalismo globalizado produz seu próprio antivírus.

Destaque-se, em meio à histeria e à irracionalidade geral, a esclarecedora reportagem da revista CartaCapital e a ponderada inteligência do comentarista Mário de Almeida, na TV Gazeta de São Paulo. Almeida brindou os privilegiados telespectadores do programa conduzido pela apresentadora Maria Lídia, na noite de sexta-feira (5/5), com uma análise simples e brilhante: a Bolívia está tentando valorizar seus ativos naturais, a Petrobras tem acumulado lucros suficientes para absorver o impacto do aumento do preço do gás sem onerar seus clientes, a oposição faz oposição e os diplomatas do governo anterior têm seu próprio viés, que nunca será imparcial.

Pensamento conservador

Faltou lembrar que as reservas de gás de Camisea, no Peru, são uma fonte alternativa contra o risco de um ‘apagão’ que estará disponível já em 2007. Que o Brasil é importante parceiro dessa iniciativa, cujas obras foram iniciadas em 2004, com a participação brasileira no capital, no projeto e na execução. E que o temor dessa concorrência iminente pode ter motivado mais a atitude de força do presidente boliviano Evo Morales do que suas conhecidas premissas ideológicas.

Mas a imprensa prefere acenar com o fim do mundo. Mesmo se declarando liberal, o que a conduziria a concluir que, no final, o mercado imporá algum equilíbrio nas negociações em torno do preço e da disponibilidade de gás, nossos formadores de opinião correm para trás. Porque a grande imprensa latino-americana não chega a ser liberal. Sua constituição ideológica é autocrática, sua visão econômica é anterior ao liberalismo.

Contempla melhor os interesses da grande imprensa continental a visão que se alimenta na superficialidade de obras como o Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, escrita pelo cubano Carlos Alberto Montaner em parceria com o peruano Alvaro Vargas Llosa e o colombiano Plinio Apuleyo – todos eles jornalistas, diga-se de passagem.

A obra foi concebida como um panfleto de autogozação, tendo sido, os três autores, jovens de classe abastada simpatizantes da esquerda. O que era apenas um deboche acabou se convertendo em vade mecum do pensamento conservador latino-americano, citada como referência por articulistas que dão todos os sinais de nunca o haverem lido. Só isso explica o fato de intelectuais e jornalistas ligados ao PSDB usarem o livro como referência, desconsiderando que os autores alinham o sociólogo Fernando Henrique Cardoso entre os grandes formadores da suposta imbecilidade dos latino-americanos.

Stalinismo e integralismo

A imprensa escolhe o viés do conservadorismo e da exacerbação da intolerância, para se fazer representante de qualquer coisa relevante. Mas também por ignorância de seus próceres, que seguem linear e planamente desconhecendo ou desprezando a natureza das complexidades que governam as relações do nosso tempo, mas também por pura irresponsabilidade.

Fechados na bolha dessa mídia, que exclui o contraditório e não enxerga a diversidade de visões com que se pode hoje ver o mundo, os cidadãos que têm acesso ao conhecimento podem estar progressivamente se afastando de valores que nos ajudaram a iniciar a reconstrução da democracia no continente e a alcançar certa modernidade em nossas sociedades.

Dentro dessa bolha podem estar vicejando as duas serpentes da intolerância: o stalinismo que se infiltra nas demandas por mais justiça social, dentro e fora dos governos da região, e o fascismo que se nutre do medo essencial da classe média – o horror ao coletivismo. Não é por puro senso de oportunidade que os herdeiros ideológicos de Plínio Salgado estão em campanha de arregimentação para seu movimento integralista em São Paulo. Os dois extremos da insanidade política sabem que o caldo de cultura pode estar pronto para o triunfo da estupidez.

******

Jornalista