No início da década de 60, o país vivia o fim de uma era romântica, já com ares da rebeldia que viria a seguir. Moças nas garupas de lambretas, adolescentes rodopiando em bambolês, rapazes acertando o gumex no cabelo conviviam com os primeiros cabeludos tocando rock and roll na guitarra, acompanhados pelo rebolado das moderninhas vestidas com minissaias e botas de cano longo. Nos anos iniciais da década que mudou tudo, o Brasil saboreava uma espécie de ‘triunfalismo nacional’, nas palavras do professor da UFF Denis de Moraes – sentimento estimulado pelos títulos conquistados pela seleção brasileira de futebol em 1958 e 1962, os nocautes de Éder Jofre, a vitórias internacionais da tenista Maria Ester Bueno e a Palma de Ouro, em Cannes, pelo filme O pagador de promessas.
Em pouco tempo o país acompanharia a organização de um amplo movimento cultural-didático conscientizador, envolvendo intelectuais, artistas e estudantes que defendiam a construção de uma cultura nacional, popular e democrática. A efervescência cultural se associava ao aprofundamento de um processo de politização e de radicalização ideológica entre direita e esquerda.
O clima de antecipação da divulgação das reformas de base – agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral – acentuava a radicalização política. O presidente João Goulart, que segundo Thomas Skidmore, não se ajustava ao ‘âmbito das respostas tradicionais’, desejava apresentar a nação um projeto de desenvolvimento do país em bases nacionalistas, defendendo a extensão dos direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais e a nacionalização de todas as refinarias de petróleo privadas.
A mobilização era intensa, tanto dos setores nacionalistas das Forças Armadas, articulados ao movimento sindical que apoiavam abertamente as iniciativas de Goulart, quanto dos setores de resistência aos projetos do governo: proprietários rurais, setores da classe média, empresários e militares agrupados no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), grandes corporações multinacionais, a UDN, o PSD, a baixa hierarquia das Forças Armadas e, principalmente, parte da imprensa.
Radicalizando o debate
Parte da grande imprensa viria a se constituir na principal portadora da mensagem contra a permanência de Goulart no poder, atuando na construção de um consenso para a intervenção militar. Em editoriais e artigos críticos ao governo federal, publicações como o Jornal do Brasil, O Globo e O Estado de S.Paulo combatiam a ameaça do comunismo, criticavam as alianças do governo com líderes de esquerda e procuravam mobilizar a opinião pública para o perigo das reformas políticas do governo.
As críticas enfatizavam a ‘subversão da ordem e o avanço do comunismo’, anunciando, em tom alarmista, que ‘forças políticas comunistas tentariam tomar o poder no país’. ‘Muito se tem suportado este país para que o funcionamento do regime não sofra interrupções, mas agora chegamos a um ponto que seria loucura continuar transgredindo. Quando os principais responsáveis pela coisa pública se associam aos mais notórios agitadores e comunistas, para pregar contra a Constituição e contra o Congresso, não é mais possível a omissão de um único brasileiro, impõem-se a luta e a reação’, bradava um editorial de O Globo, às vésperas do golpe.
No Rio de Janeiro, três empresas jornalísticas cariocas conceberam um espaço organizado de crítica às idéias nacionalistas do governo federal por meio da criação do programa radiofônico diário: a Rede da Democracia, comandado pelas redes Tupi, Globo e Jornal do Brasil. O programa era repercutido pelo país através de centenas de emissoras afiliadas e os pronunciamentos dos programas eram posteriormente publicados nos respectivos jornais. Já em São Paulo, o empresário Ruy Mesquita, publisher de O Estado de S.Paulo, vinculado à UDN, organizava semanalmente reuniões conspiratórias com grupos de civis e militares de ‘oficialidade pequena’ para encontrar formas de conter o movimento esquerdista, como ele próprio assumiria em entrevista à revista Lua Nova, em 1984: ‘Jango, pelas suas próprias condições culturais, era um incapaz. Era até uma boa pessoas para convívio social, mas completamente despreparado para algum dia ser presidente da República, muito menos num momento como aquele’, afirmou à revista o jornalista-empresário
Para o professor da UFF Aloysio Castelo de Carvalho, parte da grande mídia atribuía para si o papel de autêntica representante da sociedade, assumindo–se como instância crítica da opinião pública, e responsável por direcionar os debates sobre os rumos do país. A professora da USP Maria Aparecida Aquino, em seu livro, ‘Censura, imprensa e Estado autoritário’ concorda com esta visão e explica que a posição dos proprietários desses jornais – em especial do O Estado de S.Paulo – teoricamente justificava-se nos moldes do liberalismo lockeano. Explicando: para o filósofo inglês, o poder do governante seria outorgado pela sociedade, podendo ser revogado pela insurreição destes, caso as autoridades cometam abuso de poder. Portanto, apesar de defender a democracia, a mídia entendia as atitudes do presidente como usurpação dos direitos naturais dos indivíduos.
O Comício das Reformas, também conhecido como Comício da Central, que aconteceu em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, marcou o início do fim do governo Goulart. Na manifestação, que concentrou cerca de 150 mil pessoas – entre membros de entidades sindicais, organizações de trabalhadores, servidores público e estudantes –, o presidente alertou para a necessidade de revisão da constituição de 1946, referiu-se ao decreto da Reforma Agrária que assinara pouco antes e anunciou que iria enviar ao Congresso mensagem tratando das reformas eleitoral e universitária. José Serra, então presidente da União Nacional dos Estudantes, avaliaria a manifestação 20 anos depois: segundo ele, por um lado, havia uma capacidade de mobilização popular; mas, por outro, o evento deu às forças que promoveriam o golpe a sensação de risco em progressão geométrica. A repercussão do comício foi, na verdade, imediata. Manifestações de reação ao comício de Goulart foram organizadas em diversas cidades. Entre elas, organizada em várias capitais por setores do clero e entidades femininas, a Marcha Pela Família Com Deus Pela Liberdade.
A situação agravou-se e o confronto político culminou no golpe militar deflagrado na madrugada de 31 de março de 1964. Tropas militares marcham em direção às capitais. No mesmo dia, seis Estados (SP, MG, RS, PR e MT) anunciam estar sublevados e unidos contra o comunismo. Jango desiste do confronto com os militares e segue para o exílio no Uruguai. O golpe foi saudado por importantes setores da sociedade, entre eles parte da grande imprensa. No dia seguinte, editorial do Jornal do Brasil, afirmava que ‘não pode mais ter amparo legal quem no exercício da Presidência da República, violando o Código Penal Militar, comparece a uma reunião de sargentos para pronunciar discurso altamente demagógico e de incitamento à divisão das Forças Armadas’.
O golpe, que iniciou uma ditadura que duraria 20 anos no país, deu início a um período de repressão política e censura à imprensa. O regime militar interveio ainda na regulamentação da atividade jornalística (por meio de leis de imprensa e profissionalização) e de impostos, subsídios e preços de insumos e matérias-primas. Diante das pressões políticas e restrições à liberdade de expressão, as mesmas empresas jornalísticas que apoiaram o movimento começariam, em pouco tempo, a se distanciar do governo e a denunciar as arbitrariedades cometidas.
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Foram consultadas as seguintes fontes para a produção deste artigo: os jornais O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo; os livros Censura, imprensa, Estado autoritário, de Maria Aparecida Aquino (Edusc, 1999), Cultura e participação nos anos 60, de Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves (Brasiliense, 1982), Uma história do Brasil, de Thomas Skidmore (Paz e Terra, 1998) e A esquerda e o golpe de 64, de Denis de Moraes (Espaço e Tempo, 1989); o volume 1, nº 2 da revista Lua Nova; e o artigo ‘A imprensa golpista’, de autoria de Aloysio Castelo de Carvalho, publicado na revista CartaCapital (31/3/2004).
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Jornalista, professora titular da Faculdade Assis Gurgacz (FAG) e professora de pós-graduação da União Pan-Americana de Ensino