Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A imprensa como personagem

 

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (17/7) pela TV Brasil discutiu a nova safra de obras de ficção que têm a imprensa como pano de fundo. Seriados, livros e filmes lançados recentemente colocam a mídia no centro da trama e levantam o debate sobre a atividade jornalística. Os bastidores do jornalismo televisivo são dissecados em The Newsroom, série do canal a cabo HBO que estreou há algumas semanas nos Estados Unidos. Criada pelo premiado roteirista Aaron Sorkin, a série mostra a glamourosa e maçante rotina do fictício canal Atlantis Cable News.

A trama é centrada no novo telejornal da emissora, ancorado pelo jornalista veterano Will McAvoy. Respeitado pelo público, por trás das câmeras o experimentado Will tem sérios problemas de relacionamento com a equipe. Em cena, alguns dos típicos dilemas da profissão, como os atritos da área de conteúdo com o setor comercial e a ditadura da audiência. A série abre espaço para questões que rondam as redações de telejornais, onde os atributos físicos podem fazer diferença. Outro aspecto mostrado em The Newsroom é o conflito de gerações dentro das redações.

O embate entre veteranos e novatos também é retratado no livro Exclusiva, da conceituada jornalista inglesa Annalena McCafee, que chegou às livrarias em julho. Uma inexperiente repórter de fofocas busca uma vaga no prestigiado suplemento literário do fictício The Monitor. Para isto, precisa traçar o perfil de uma septuagenária correspondente de guerra. Desta vez, o pano de fundo é a chegada da internet às redações, em 1997, e o sórdido mundo dos tabloides ingleses. O desastroso encontro entre as duas é uma crítica de Annalena sobre o passado e o futuro do jornalismo.

Mais defeitos que qualidades

Nada de virtudes também em Os Imperfeccionistas, obra de estreia do jornalista Tom Rachman. A estrela é a vulnerabilidade da imprensa. O livro conta a história de um jornal internacional desde seu nascimento até o melancólico fim. Passa pela redação do impresso uma série de personagens nada românticos, como um estagiário inseguro, um obtuarista entediado e uma jornalista paranoica. É a imprensa desmistificada, sem vilões nem mocinhos. O jornal retratado em Os Imperfeccionistas está no centro da crise que atinge a mídia impressa. Nascido de um sonho romântico, o diário foi atropelado pela velocidade das novas tecnologias e personifica a perda de poder e de influência dos jornais impressos.

Na trilogia Millenium, a clássica figura do jornalista convertido em detetive divide a cena com uma jovem hacker genial e completamente desajustada. A saga policial do jornalista e ativista político sueco Stieg Larsson já vendeu 10 milhões de exemplares e foi parar nas telas de cinema. Nela, Mikael Blomkvist, jornalista especializado em Economia, é condenado por difamar um empresário. Arruinado, o personagem luta para recuperar a credibilidade e provar que suas denúncias são verdadeiras. O ponto de partida da trilogia é um crime ocorrido nos anos 1960. Investigador talentoso, Mikael é contratado pela família da vítima para desvendar o misterioso assassinato. Violência, corrupção, invasão de privacidade e movimentos neofascistas dão o tom do thriller.

Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro a escritora e jornalista Ana Maria Machado, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), e o crítico de cinema Rodrigo Fonseca, do jornal O Globo. Intelectual premiada, Ana Maria publicou mais de 100 livros em 40 anos de carreira. Em Infâmia, lançado no ano passado, a escritora trata da imprensa ao questionar os artifícios que encobrem a verdade. Rodrigo Fonseca é repórter do Segundo Caderno do Globo. Trabalhou no Jornal do Brasil e nas revistas Veredas e Set. Em São Paulo, o programa contou com a presença de Cristina Padiglione, crítica de TV do jornal O Estado de S.Paulo. A jornalista mantém o blog Teleguiados no site do diário.

Os primeiros passos

Em editorial, Dines explicou que o escritor francês Honoré de Balzac é o “pai do moderno romance” e da crítica da imprensa através da ficção: “A trilogia Ilusões Perdidas começou a ser publicada em 1836, poucas décadas depois da criação da própria palavra ‘jornalismo’ e do espetacular salto da imprensa francesa em termos de audiência e poder. Nem os jornais nem jornalistas preocuparam-se em revidar as críticas de Balzac. Principalmente porque Balzac, como muitos romancistas contemporâneos, utilizou intensamente a imprensa diária para veicular os seus folhetins antes de serem impressos em formato livro”. Dines comentou que o teatro também satirizou o jornalismo, mas que o cinema foi a forma de arte que mais usou a imprensa como assunto.

A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou o jornalista e professor Carlos Eduardo Lins da Silva. Na avaliação de Lins da Silva, a ficção tende a exagerar os atributos positivos ou negativos de qualquer pessoa ou categoria profissional para nos forçar a pensar um pouco mais sobre como essa representação na realidade se comporta. “A ficção serve para que nós tenhamos novos elementos para ajudar a compreender a nossa profissão, o nosso desempenho, o nosso comportamento, mas eles não são representação fiel da realidade. São representação ficcional da realidade e é assim que devem ser entendidos”, advertiu.

O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, colunista do jornal O Globo, analisou os personagens retratados em Os Imperfeccionistas: “Esses caras erram muito, esses caras são muito ridículos, às vezes, são muito frágeis, muito humanos, e isso numa profissão que tem o compromisso com a verdade, com a objetividade, com o acerto. Nessa redação de Os Imperfeccionistas tinha uma redatora que vivia em litígio com a redação, com a chefia da redação, porque ela não era elevada e, de sacanagem, colocava em vez de Saddam Hussein, Satam Hussein, para ver se passava. Ele tem uma visão muito crítica do jornalista, da redação, da confecção de um jornal, da fragilidade disso, da capacidade de se errar, em uma profissão que não gosta de errar”.

Do maniqueísmo à realidade

Para Arthur Dapieve, cronista de O Globo, a mudança na forma como a ficção retrata o jornalista – do herói do passado a um personagem falível na atualidade – ocorre também com outras profissões, como médicos, militares e advogados. “A exigência do público pela veracidade, por ser uma coisa mais crua, mais próxima da realidade, se reflete na internet o tempo todo, nos reality shows”, disse. O público ficou menos fascinado pela idealização do personagem e mais interessado em “pessoas de carne e osso”. Dapieve contou que as redações têm um glamour por conta da falta de rotina e pela possibilidade de se conhecer grandes personagens, mas a realidade da imprensa é bem menos charmosa.

No debate ao vivo, Ana Maria Machado contou que o livro Infâmia, apesar de ser uma dura crítica à imprensa, nasceu da admiração pela profissão de jornalista, seguida por seu pai e seus irmãos. “Eu não quis simplificar as coisas. Eu tenho dentro da história o jornalista responsável, que vai apurar e que ajuda a denunciar alguma coisa, e também o jornalista mais irresponsável, que vai repetindo o que alguma fonte plantou”, explicou a escritora.

Dines perguntou a ela se o mundo dos bastidores está sendo supervalorizado na sociedade contemporânea. “Existe uma curiosidade sobre o ser humano em geral e isto alimenta a literatura e arte desde sempre. E agora essa curiosidade toca a bisbilhotice um pouco. Estão aí os Big Brothers todos e outros exemplos de evasão de privacidade. E depois ainda dizem que é invasão de privacidade. Isso de querer ver a vida do outro como é no trabalho todo dia, no cotidiano dele quando chega em casa, acho que existe em todas as profissões”, sinalizou a escritora. Com o fenômeno dos canais que têm programação 24 horas, criou-se uma demanda por assuntos corriqueiros.

Fórmulas prontas

Há um maniqueísmo, de acordo com Rodrigo Fonseca, na forma como os jornalistas, em geral, aparecem na ficção. “É uma fonte de heróis e vilões, um faroeste de palavras”, resumiu o crítico de cinema. No clássico Superhomem (1978), o conflito entre a intrépida repórter Lois Lane e o “janotinha” Clark Kent é absolutamente estereotipado. Outro exemplo é a forma como os cartuns publicados nos jornais norte-americanos nos anos 1930 e 1940 mostravam os jornalistas.

Rodrigo Fonseca ressaltou que um filme essencial para o entendimento do mundo contemporâneo, e que não tem sido comentado, é O Quarto Poder, dirigido por Costa Gavras. “Esse filme deu um pouco o entendimento de, nesse nosso desejo de entender o outro, o quanto a gente cria um espaço para que esse olhar sobre o outro vire um espetáculo, um circo mesmo. Esse é o grande filme sobre o circo da mídia”, analisou.

Cristina Padiglione destacou que a ficção televisiva brasileira trata a imprensa com excessivo cuidado. Os jornalistas, com raras exceções, não chegam a ser os protagonistas das tramas. “A novela Celebridade, de Gilberto Braga, tinha na mocinha a figura da Malu Mader, que era uma produtora musical famosa, perseguida pela imprensa. Essa personagem, na sinopse original do Gilberto, era para ter sido uma jornalista, uma âncora de televisão. E aí foi pedido ao Gilberto que ele mudasse esse personagem para evitar eventuais conflitos ou a glamourização do papel do jornalista”, disse.

A jornalista vê com naturalidade o fato de a ficção e o entretenimento acabarem criando uma caricatura do que é a realidade em qualquer profissão. Em uma comparação entre as formas de arte, Cristina Padiglione avalia que na literatura exagera-se mais na caracterização dos personagens do que nos programas televisivos.

 

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Tudo começou com Balzac

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 648, exibido em 17/7/2012

Tudo começou com Honoré de Balzac: ele é o pai do moderno romance mas é também pai – ou padrasto – da crítica da imprensa pela via da ficção. A trilogia Ilusões Perdidas começou a ser publicada em 1836, poucas décadas depois da criação da própria palavra “jornalismo” e do espetacular salto da imprensa francesa em termos de audiência e poder.

Nem os jornais nem jornalistas preocuparam-se em revidar as críticas de Balzac. Principalmente porque Balzac, como muitos romancistas contemporâneos, utilizou intensamente a imprensa diária para veicular os seus folhetins antes de serem impressos em formato livro.

O teatro foi outra arte que satirizou o jornalismo, mas a campeã em matéria de utilização da imprensa e da mídia como assunto foi a sétima arte, o cinema. Na telona dos cinemas ou na telinha da TV ao longo de quase 120 anos, a imprensa tem sido intensamente focalizada, ora para ser denunciada ou glorificada.

Protagonista da sociedade contemporânea, a mídia informativa tem aversão aos holofotes. Utiliza-os profusamente em todas as esferas e oportunidades, mas poupa-se e não é por modéstia: não gosta de expor as suas mazelas; prefere discuti-las em ambientes fechados, temerosa dos efeitos sobre a sua credibilidade.

Esta “discrição” não tem evitado que a imprensa esteja cada vez mais exposta e visível. Livros como Os Imperfeccionistas, Exclusiva e a trilogia Millenium seguem a trilha iniciada por Balzac há 176 anos. E um novo seriado americano, Newsroom, apesar de estar apenas no quarto episódio e em pleno verão, promete trazer para o grande público algo mais contundente do que a coluna de um ombudsman. É o que mostra de Nova York a reportagem da correspondente Lúcia Guimarães.

 

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