Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa e a crise da Varig

A crise da Varig ainda não terminou mas já deu demonstrações monumentais do quanto o Brasil carece de instituições confiáveis, capazes de colocar os interesses da sociedade acima de interesses privados. Justiça, governo federal e imprensa deram vigorosas demonstrações de incompetência e despreparo ao lidar com grupos organizados e articulados para a obtenção de vantagens através da manipulação de informações.

O desempenho lastimável da Justiça e do governo federal no que diz respeito à Varig mereceria uma análise mais profunda, mas é sobre a atuação da imprensa que vale a pena refletir neste momento. Sistematicamente os jornais brasileiros, com raras exceções, nomearam a empresa NV Participações, que usa o nome fantasia de ‘Trabalhadores do Grupo Varig’ (TGV), como ‘um grupo que representa os trabalhadores da Varig’. Essa foi, sem dúvida alguma, um dos maiores exemplos do profundo amadorismo de uma imprensa que acredita que os nomes realmente nomeiam aquilo que nomeiam. A julgar por toda essa ingenuidade, haverá entre os jornalsitas que cobrem o caso da Varig certamente aqueles que acreditam que a Embratel, por se chamar Empresa Brasileira de Telecomunicações, continua a ser uma empresa nacional.

O TGV ou a NV Participações, que são a mesma coisa, não representa os trabalhadores da Varig. A origem deste grupo remonta a 2001, quando um grupo de ex-funcionários da Varig, notadamente pilotos que foram demitidos da empresa, articulou a tomada do controle das associações de pilotos, comissários e mecânicos da Varig, em estreita associação com consultorias de empresas com nomes como GGR Finance e Invest Partners. A tomada de decisão no TGV ou NV Participações é feita nessas consultorias e não nas associações de trabalhadores que elas controlam já há alguns anos. Esse processo de decisão reúne consultores e advogados pagos pelas consultorias, e não pelas associações de trabalhadores.

Exemplo da Eron

Há cerca de um ano, este grupo, aproveitando-se de brechas no estatuto do Sindicato Nacional dos Aeronautas, convocou uma assembléia de trabalhadores para eleger um comitê que representaria os funcionários da Varig no processo de recuperação judicial da empresa. A assembléia, que não chegou a ser realizada, teve seus ‘resultados’ publicados em edital no Diário Oficial um dia antes da data marcada para a realização do encontro, evidenciando claramente a fraude. No entanto, a despeito de todas as evidências de manipulação, a Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro negou ao Sindicato Nacional dos Aeronautas uma liminar na qual a entidade questionava a validade de uma assembléia que nunca foi realizada – e que transferiu para uma empresa a representação dos trabalhadores da Varig.

Conforme já denunciei em outro artigo, publicado pela Gazeta Mercantil (‘Varig, a caminho de se tornar a Enron do Brasil’, 5/6/2006, coluna ‘Opinião’), a GGR Finance e a Invest Partners assinaram contratos com o TGV e a Varig pelos quais se comprometem a conseguir recursos para a Varig mediante a cobrança de porcentagens que variam de 2,5% a 10%. Ou seja: as consultorias GGR Finance e Invest Partners nunca tiveram como objetivo recuperar a Varig. Sua principal motivação, claramente definida nos contratos que assinaram com o TGV e a Varig, é a de ganhar comissões sobre recursos aportados à empresa.

Apesar de todas as evidências de que se tratavam de grupos que não visavam a recuperação da empresa, mas lucrar com seu infortúnio, o TGV continuava defendendo a transformação do fundo de pensão dos trabalhadores da Varig, o Aerus, que tem em caixa cerca de 2 bilhões de reais, em ‘investimento direto na Varig’. Se isso tivesse se materializado dois meses atrás, as consultorias que se relacionam com a TGV teriam lucrado algo ao redor de 200 milhões de reais às custas das complementações de aposentadorias de milhares de trabalhadores.

O que impediu esse golpe, que em muito se assemelha ao golpe que destruiu a Enron e o fundo de pensão dos trabalhadores da empresa elétrica dos EUA, foi a intervenção da Secretaria de Previdência Complementar no Aerus, brecando quaisquer saques de recursos.

Interesse único

Todas essas informações, que são públicas, não foram debatidas pela imprensa em momento algum durante a crise da Varig. No leilão de venda da empresa, realizado há duas semanas, a única proposta feita pela Varig partiu do TGV. Nesse momento, o festival de desinformação da imprensa levou a sérias distorções acerca das notícias que eram veiculadas, distorções estas que os operadores da Bolsa de Valores de São Paulo não engoliram: assim que a Bovespa tomou conhecimento de que a única proposta era a do TGV, a cotação das ações da Varig despencou 60% em um único dia.

Chegou-se a dizer que se tratava de um ‘preconceito contra os trabalhadores da Varig’, uma afirmação que menospreza a inteligência do pessoal da Bovespa. Como os investidores lêem a Gazeta Mercantil, eles já sabiam que os grupos que se articulavam à sombra da TGV eram consultorias que estavam manobrando para obter comissões com a venda da empresa – uma informação que torna evidente, para qualquer pessoa com cérebro, que a tal oferta não era séria, não seria honrada, daí a manifestação dos investidores da Bovespa de desvalorizarem as ações da Varig.

Como se vê, os investidores da Bovespa são mais jornalistas do que os jornalistas que cobriram o caso. Eles sabiam de coisas que os jornalistas nunca se deram ao trabalho de verificar, o que poderiam ter feito lendo jornais. O juiz Luiz Roberto Ayoub, da 8ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, que se autointitulava ‘anjo da guarda da Varig’, revelou-se na verdade o ‘anjo da morte’ da empresa ao aceitar a oferta da empresa NV Participações. Isso porque ele sabia, há muito tempo, quais eram as reais motivações desse grupo, através de repetidas denúncias feitas diretamente a ele pelos sindicatos que reúnem a categoria, o dos Aeronautas e o dos Aeroviários. No entanto, revelando pouca coragem, ele aceitou a proposta condicionando sua aprovação ao depósito dos 75 milhões de dólares que a Varig necessitava de capital de giro até a sexta-feira (23/6).

Tanto o juiz Ayoub quanto o TGV, a torcida do Flamengo e a do Corinthians sabiam que a NV Participações não pretendia fazer o depósito porque o interesse dessa empresa é apenas um: o de saquear a Varig.

Falsidade ideológica

O que se seguiu foi um festival de hipocrisia que qualquer jornalista com um mínimo de competência teria desvendado. O Sindicato dos Aeronautas publicou repetidas denúncias contra o TGV e, inexplicavelmente, teve seus boletins e seu site na internet censurados pela Justiça Trabalhista do Rio de Janeiro, a mesma que validou uma assembléia de trabalhadores que não existiu.

O TGV correu ao BNDES para pedir um empréstimo para poder viabilizar sua oferta. Com que objetivo? A comissão, é claro. Vendo a porta do BNDES se fechar, iniciou um autêntico leilão paralelo, conversando com ‘investidores’ que ninguém conhecia na tentativa de conseguir os recursos para fazer o depósito do valor necessário à concretização do negócio. Com que objetivo? A comissão, é claro. Dois dias antes do final do prazo estabelecido pelo juiz, um representante do TGV, o Sr. Márcio Marsilac chegou a dizer que talvez não conseguisse os recursos necessários até o prazo final, mas que ‘um empréstimo-ponte do BNDES resolveria a questão’.

Claro que resolveria a questão: um empréstimo de BNDES, no valor de 75 milhões de dólares, renderia às consultorias que controlam o TGV uma comissão da ordem de 7,5 milhões de dólares. Mas, e quanto à salvação da Varig? É evidente que ninguém, à exceção de um grupo de trabalhadores abnegados, está muito preocupado com isso. Nenhum jornal denunciou a censura sofrida pelo site do sindicato dos trabalhadores. Nenhum jornal se perguntou por que um grupo que afirmava ter os recursos necessários à viabilização de sua proposta estava recorrendo ao BNDES para obter empréstimos. Nenhum jornal questionou o juiz Ayoub para o fato de que o TGV estava promovendo um leilão paralelo, num flagrante desrespeito à Justiça, que imaginava já ter resolvido o problema ao qualificar a oferta da TGV.

Vencido o prazo do depósito, ocorreu o que qualquer ser pensante sabia que ia ocorrer. O tal TGV desapareceu, evidenciando claramente o caráter fraudulento de sua ação. O grupo, que articulou uma proposta fraudulenta de compra da Varig, oferecendo recursos que não tinha, não foi sequer molestado pela Justiça, que deveria acionar seus responsáveis pelos enormes prejuízos que causaram à Varig, fazendo uma oferta de compra que não podiam honrar.

No Código de Processo Civil isso é crime e se chama falsidade ideológica. Questionado a respeito por um jornalista, o juiz Ayoub disse que precisava ‘avaliar melhor essa questão’. Bem, se um juiz, que é professor de Direito da FGV, não sabe o que é falsidade ideológica, o que sabermeos nós, os pobres mortais?

À altura do Brasil

Passado o fracasso do leilão, a VarigLog formalizou uma proposta pela Varig. Os jornais esqueceram o TGV, que desapareceu de cena. Os prejuízos que esse grupo causou à Varig e aos trabalhadores da empresa são incalculáveis. Quem vai acioná-los? O despreparo da Justiça, da imprensa e do governo federal no enfrentamento de grupos bem assessoradas por advogados e consultores está criando as condições para a fabricação de uma monumental fraude envolvendo a Varig e os enormes recursos que a empresa tem a receber, que podem terminar nas mãos de pessoas que não têm interesse na salvação da empresa.

A Varig não é uma empresa falida. Na verdade, a empresa é uma mina de ouro. A companhia aérea tem créditos a receber do governo federal e de vários governos estaduais, já consignados pela Justiça, que alcançam cerca de 6 bilhões de reais, que serviriam para pagar dívidas e manter a empresa operando, ajudando a preservar empregos e, principalmente, a oferta de opções aos passageiros, que vão terminar pagando caro pela concentração de mercado que o fim da Varig vai acarretar.

Mais ainda: o fundo de pensão dos trabalhadores da empresa tem cerca de 2 bilhões de reais em caixa, recursos estes que a NV Participações (TGV) já recomendou transformar em ‘investimento na Varig’, sacrificando a complementação de aposentadoria de milhares de aposentados.

A pergunta que é preciso responder é a seguinte: se a sociedade podia contar com a imprensa para denunciar os desmandos da Justiça e do governo federal, o que acontece quando a imprensa se omite e passa a cobrir um evento com um grau de profundidade zero, sendo iludida e manipulada a ponto de chamar de ‘trabalhadores’ um grupo de consultores interessados em lucrar com a crise da Varig?

Que os padrões de qualidade, seriedade e profundidade da imprensa brasileira têm andado relativamente baixos, isso muita gente já sabe. A crise da Varig, no entanto, evidenciou que a imprensa brasileira pode ser facilmente manipulada por grupos de interesses com objetivos fraudulentos – o que, em última análise, é algo terrível de se constatar porque nos coloca diante de uma questão de difícil resposta: em caso de desmandos, quem vai defender a sociedade?

As instituições brasileiras, entre elas a Justiça, a imprensa e o governo federal, precisam demonstrar que estão à altura do país e atuar para que o desfecho da crise da Varig não beneficie apenas alguns em detrimento de toda a sociedade.

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Jornalista, professor de Cultura Organizacional da Universidade Metodista de São Paulo, palestrante do Núcleo de Formação Profissional da Câmara Brasil Alemanha e autor do livro Propaganda, a arte de gerar descrédito‘, editado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas (FGV).