Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A Imprensa e a ilusão que não pode ser perdida

Sempre amigáveis com as demais artes, a literatura, o teatro e o cinema têm sido implacáveis quando tratam do jornalismo. Não o consideram da mesma família, jamais ousariam classificá-lo como a Oitava Arte, filha espúria do casamento com a História.

A imprensa começou a ser maltratada a partir do momento em que ganhou escala e institucionalizou-se. Espécie de vingança contra a sua capacidade de multiplicar informações e ideias, castigo contra o seu crescente e imbatível poder. Ilusões Perdidas, que o próprio Honoré de Balzac considerava a obra capital na sua Comédia Humana, começou a ser publicada em 1836, poucas décadas depois da incorporação da palavra journalisme aos principais idiomas europeus e do salto dos quotidiens, diários, para tiragens massivas. [A palavra teria sido criada nos anos 80 do século XVIII; Hipólito da Costa, poliglota com veleidades de linguista, chama os jornalistas de “redatores das folhas públicas”.]

É arrasador o percurso do protagonista Lucien de Rubempré, que deixa a província honrada para buscar a glória numa Paris viciada. O jornalismo aparece como destruidor das ilusões. Não há idealismo, não há arte nesta escrita diária.

O prussiano antissemita Gustav Freytag inventou em 1853 um personagem chamado Schmok na comedia Die Journalisten; protótipo do joão-ninguém, rastejante e venal, encontra no jornalismo uma forma de sobreviver. O nome foi fartamente empregado pelo satirista e crítico de mídia vienense Karl Kraus, passou para o inglês e nos EUA entrou no jargão jornalístico. Na mesma Viena e certamente inspirado pelo mesmo Karl Kraus, o médico e escritor Arthur Schnitzler lançou em 1917, no auge da Primeira Guerra Mundial, uma comédia alegórica sobre jornalistas e censura, Merlo e Mimosa. Na Inglaterra, onde a imprensa ganhou a batalha pela liberdade, Anthony Trollope e John Stuart Mill também deram suas contribuições para a desmoralização do jornalismo.

Pedestal

Na Sétima Arte – o cinema –, a imprensa encontrou um pedestal para ser glorificada e satanizada. Foi na telona dos cinemas que o jornalismo apareceu como “a última profissão romântica” e, em simultâneo, como abrigo dos crápulas. A biografia de Émile Zola (produzida pela Warner Brothers e dirigida pelo refugiado do nazismo William Dieterle, em 1937) trata do famoso romancista que tirou o capitão Alfred Dreyfus do degredo na Ilha do Diabo, mas não se detém na manchete mais impactante e importante da história do jornalismo, “J’Accuse” (Eu acuso), tirada de uma carta aberta do escritor ao presidente francês.

O trabalho investigativo dos repórteres Bob Woodward & Carl Bernstein derrubou Richard Nixon, o presidente da maior superpotência mundial, mas seu feito maior foi transformar-se em paradigma do jornalismo militante e audaz graças à adaptação cinematográfica do seu livro Todos os homens do presidente.

O sueco Stieg Larsson, autor da trilogia “Millenium”, morreu prematuramente antes de ver sua obra transformada em best seller mundial e já transformada em dois filmes. Era jornalista e o jornalismo é o pano de fundo para os seus intrigantes e irresistíveis relatos. Os imperfeccionistas, de Tom Rachman, e Exclusiva, de Annalena McAfee, mergulham neste mesmo mundo, devorados não propriamente pelos profissionais de imprensa ou pelos jovens que desejam seguir a profissão, mas por uma legião mundial fascinada pela máquina de celebrar e destruir, entreter e enganar chamada mídia. A recém-lançada série The Newsroom (Redação), da HBO, com apenas quatro episódios, já é tópico de debates, interpretações e execrações. Viva elas!

Metajornalismo

A imprensa é uma rede social, orgânica e natural, que antecede a criação formal das redes sociais. Imperiosamente protagonista, abomina os holofotes que ela própria acende, prefere apontá-los em outras direções. Isso explica, em parte, a pauleira a que é submetida desde Balzac a Aaron Sorkin (o autor de Newsroom).

O jornalismo é inevitavelmente metajornalismo, a forma de noticiar passou a ser notícia. Uma nova pergunta foi adicionada às clássicas questões que organizam o relato – “que? quem? quando? onde? como? por que?”. Agora importa saber como o fato está sendo informado. A salvação da imprensa está na manutenção plena da sua pulsação crítica, controlar o seu inconformismo é suicídio. A grande virtude do jornalismo está na sua capacidade de ser efêmero e vital, de encarar os seus vícios e escancarar as infâmias que transmite.

Esta derradeira ilusão não pode ser perdida.

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