O noticiário sobre os gastos oficiais com cartões de crédito corporativo é parte de uma síndrome que afeta a imprensa brasileira desde os anos 1990 e que se manifesta por uma persistente incapacidade de conectar os fatos presentes aos correlatos do passado. Algo como uma ‘armadilha do tempo’, para usar o exemplo do filme no qual o personagem de Bill Murray não conseguia fazer amanhecer um dia diferente até que aceitasse a necessidade de conhecer melhor a si próprio e a conveniência de evoluir, de se tornar melhor.
Ao repetir incessantemente um modelo de conversação que parece não considerar a natural evolução da sociedade, da cultura e de tudo que acontece em seu universo – como as coisas da política e da economia – a imprensa se prende a uma visão de mundo que nega a dinâmica das relações humanas e das relações entre o ser humano e o ambiente.
Essa negação fica clara no ponto a partir do qual a imprensa julga todo fato que ameace colocar em xeque os dogmas do chamado liberalismo. Essa síndrome pode ser diagnosticada da mesma forma no noticiário recente sobre os números da devastação da Amazônia, quando toda a imprensa se amarrou ao aparente desencontro de dados e deixou de lado o essencial, que é a necessidade – imposta pelo estado do mundo e pelo bom senso – de transformar o modelo econômico, tornando-o parceiro da diversidade
ambiental, e não seu inimigo.
Tratamento adequado
Mas deixemos a questão amazônica à parte, que nos remeteria a uma complexidade ainda maior, e vejamos o que ocorre quanto ao problema dos abusos na utilização dos cartões corporativos. Claramente, desde a primeira notícia, os jornais e outras mídias apenas repetem o que está publicado para qualquer internauta no Portal da Transparência. Evidentemente, a partir das primeiras ‘revelações’, a imprensa passou a contar com colaboradores dedicados a levantar os aspectos mais grotescos do mau uso desse recurso da gestão pública.
Já se disse neste Observatório que o governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores sofre de uma propensão à autofagia – fato que aborrece muitos comentadores deste espaço democrático, mas que pode ser comprovado desde as primeiras divergências públicas no primeiro governo do presidente Lula, que levou ao surgimento do PSOL, e no escândalo que a imprensa chamou de ‘mensalão’. No caso dos cartões corporativos, essa propensão se revela nas reações espontâneas e explicitadoras das divergências internas que conduziram à demissão da ministra Matilde Ribeiro.
Os demais partidos também convivem com dissensões internas, muito claras, por exemplo, no caso da disputa pela prefeitura de São Paulo, que pode desviar do rumo do limbo a carreira política do ex-governador Geraldo Alckmin e criar um obstáculo a mais para os planos presidenciais do governador José Serra. Só que o PSDB procura não levar a disputa interna para o domínio público, e nisso tem contado quase sempre com certa discrição da mídia.
Se o governo do PT não pode contar com tal colaboração, se seus próceres, ainda por cima, manifestam especial talento para trapalhadas de toda ordem, claro que não cabe à imprensa aliviar a mão para preservar a imagem desse governo. Mas também se espera que a imprensa tenha como pressuposto a melhor fundamentação da opinião do público, e as abordagens de temas como a má administração dos recursos públicos e a destruição da Amazônia estão a merecer tratamento mais adequado.
Problema maior
Primeiro, é preciso que os dados de governo sejam confrontados num cenário mais amplo e devidamente ponderados com as realidades de cada período. Comparar números absolutos sobre o painel da economia dos anos 1990 e sobre o atual cenário econômico, sem as ressalvas devidas, não é a melhor prática jornalística. Da mesma forma, não é bom jornalismo citar números sem confrontá-los com variáveis como o tamanho do orçamento em cada época analisada. Além disso, isolar os gastos com cartões corporativos das outras formas de dispêndio do dinheiro público não ajuda a sociedade a mensurar proporcionalmente os desvios da administração.
A imprensa passou a última semana divulgando diariamente novas ‘descobertas’ que estão espontaneamente escancaradas no portal dos gastos públicos, sem informar ao seu cliente, o leitor ou internauta, o peso proporcional das distorções no total de despesas.
Qualquer leitura mais atenta das coleções de jornais dos últimos dez dias revela que se trata de quirera no imenso volume do orçamento. Mas, com o noticiário preso ao varejo e picotado no dia-a-dia – como o personagem do filme O feitiço do tempo – o cidadão e a cidadã ficam impedidos de perceber o problema maior, que é a falta de controle dos gastos públicos, que se perpetua por aqui desde que D. João veio refundar seu reinado.
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Jornalista