Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa, na superfície do mar de lama

Agora que a imprensa brasileira se acomodou no varejo do noticiário sobre o escândalo político, concentrando-o no Partido dos Trabalhadores, são mínimas as possibilidades de que a opinião pública venha um dia a ser apresentada ao que realmente é o sistema corrupto e corruptor que se nutre no financiamento das campanhas eleitorais – uma das principais formas de ataque ao tesouro público na nossa incipiente democracia.

Nem mesmo a afirmação do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, na semana retrasada, de que também o PSDB foi beneficiário e doador de dinheiro ‘por fora’, foi suficiente para que o olhar da imprensa se ampliasse do curto prazo e do caso específico para o sistema em si – dando-nos a oportunidade de entender como funciona o esquema em que chafurdam o sr. Jefferson, seus amigos e desafetos atingidos por suas denúncias e confissões – e muitos outros dignitários da República.

A imprensa não se moveu em busca da nova pista, limitando-se, quando muito, a citar a frase do deputado sobre a extensão tucana do lamaçal, abandonando o fio que poderia nos conduzir ao miolo da meada da corrupção.

Não se trata apenas de inapetência para a investigação, de incompetência ou da falta de uma inteligência sistêmica, que fosse capaz de tirar o noticiário do raciocínio linear e de curto alcance e nos revelasse a podridão em si, para que, a partir da verdade mais ampla, se pudesse mover a opinião pública no sentido de reformar as instituições. Trata-se de uma clara escolha. É preciso também afirmar que não são poucos os jornalistas que fizeram dinheiro trabalhando em campanhas eleitorais nos últimos anos e que hoje opinam, direta ou indiretamente, em alguns dos mais conceituados veículos do país.

Fenômeno social

Damos de barato que falta à imprensa a estrutura necessária para que as investigações avancem além do material que os próprios suspeitos entregam diretamente às redações. Também é bastante claro que houve um corte no processo de formação de repórteres investigadores e que se perdeu uma respeitável tradição de profissionais capazes de
correlacionar fatos, analisar implicações e construir histórias coerentes, integradas e profundas, independentemente ou mesmo à revelia das fontes oficiais ou dos ‘informantes’ interessados em livrar sua própria cara.

O mais grave, porém, é o evidente comprometimento da pauta – seja pelo viés imposto pelos donos da mídia, seja pela conveniente presença nas redações de profissionais cujas biografias estão comprometidas e que não têm o necessário distanciamento do fato noticiado.

A imprensa insiste no varejo por incompetência e por interesse, e, no lusco-fusco do noticiário difuso, evita tocar a ferida, porque parte dela se mistura com a ferida. Sem precisão, o tiroteio atinge indiscriminadamente todo o Parlamento, o governo, as instituições em geral. Com mais qualidade, qualificam-se os bandidos segundo sua relevância e culpabilidade, ganha a democracia. Temos uma longa lista de corrompidos, mas faltam corruptores. Quantos deles são, coincidentemente, grandes anunciantes?

Não chegamos nem de longe a explicar ao leitor como se formam os caixas que abastecem a mala-preta, e deixamos que se consolide a impressão geral de que a democracia é esse charco onde proliferam os ladrões do erário. Está criado o fenômeno social que Monique Augras, professora-titular da PUC-Rio, chama de opinião pública estática e dinâmica:

‘Um acontecimento [ou notícia] pode cristalizar uma opinião latente [a crença geral de que todos os políticos são desonestos – notas do redator], provocando o aparecimento de uma corrente de opinião (opinião dinâmica). Mais tarde essa corrente diluir-se-á, perdendo importância, mas as vivências provocadas pelas experiências cristalizadoras vão permanecer, agregando-se às opiniões latentes’.

A inteligência que falta

Além das competências específicas, porém, o que mais falta faz à nossa imprensa é a capacidade de sair da armadilha do pensamento linear, de curto prazo, que nos prende à ilusão de que tudo tem uma relação imediata de causa e efeito. Ninguém parece capaz de estender o raciocínio para uma amplitude sistêmica, ou – mais grave – de fazer a necessária mescla entre os fatos de curto prazo e as relações sistêmicas entre eles. Em outras palavras, nossa imprensa parece nunca ter sido apresentada à teoria da complexidade, que deveria ser o fundamento ideológico do jornalismo.

Busca-se sempre fugir da complexidade, com a compulsão ao reducionismo, ao tratamento simplório de questões que exigem mais ambição intelectual. Por outro lado, perguntas simples e fundamentais nunca são feitas. Por exemplo: um intelectual com fortes interesses de poder deve continuar sendo respeitado como intelectual? Como devemos tratar no noticiário suas tiradas sobre este ou aquele assunto no qual tem interesse pessoal direto?

Reflexões sobre o modo como a imprensa influencia o ânimo social passam longe das redações. Um conceito quase cínico de objetividade envenena as pautas. A imprensa parece acreditar realmente que tangibiliza o mundo por meio da notícia. Ilude-se e engana a sociedade com a ficção segundo a qual ela é a instituição que faz a representação mais objetiva da realidade. Daí para diante, é apenas questão de rotina para que se dê a construção e consolidação de preconceitos e a cristalização de pontos de vista que afastam o cidadão do Estado e alienam o indivíduo do contexto social.

O psicoterapeuta e pesquisador Humberto Mariotti, autor de As paixões do ego – complexidade, política e solidariedade, observa, sobre o grande sistema econômico e político (no qual a imprensa se insere), que…

‘…um dos grandes interesses da nossa cultura – talvez o maior deles – é manter o representacionismo, isto é, conservar a crença de que as informações já vêm prontas de fora e são descrições objetivas do mundo. Se tais informações já vêm prontas de fora e se sua percepção é representacional (e passiva), basta manipulá-las para manipular as pessoas que as recebem’.

O varejo do noticiário nos permite vislumbrar o grau de comprometimento de setores do partido governista e alguns de seus aliados com práticas ilegais de financiamento de campanha, transferências irregulares de fundos, omissão na comunicação de práticas financeiras, possível evasão fiscal, numa longa lista de patranhas denunciadas, verossímeis e presumivelmente comprováveis.

O leitor quer saber em que grau isso é prática corriqueira entre todos os partidos, em que nível esse sistema compromete a representatividade política dos eleitos, como podemos dar um basta nisso tudo.

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Jornalista