Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa não vai tão bem assim

Desde o dia 14 de março O Estado de S.Paulo circula com novo projeto gráfico. O redesenho foi lançado numa edição histórica, com uma tiragem que ultrapassou meio milhão de exemplares, e vários artigos esmiuçaram os fundamentos da mudança na paginação. Mas, entre as análises sobre estética e legibilidade, uma notícia passou sem chamar a atenção: justamente a que reportava o juízo que o cidadão brasileiro faz da sua própria imprensa. A quantas anda a credibilidade do jornalismo?


Sobre o tema da credibilidade, essa edição do dia 14 trouxe uma reportagem esclarecedora, assinada por Daniel Bramatti: 91% acham que mídia é arma anticorrupção. A partir de uma pesquisa que o Instituto Análise realizou especialmente para o Estado, a matéria mostrou que o conceito dos jornais no Brasil é positivo e, mais que isso, está associado ao combate à corrupção. Ótimo. Sinal de que o público entende que os jornais existem para fiscalizar o poder. Mas a mesma pesquisa apontou um senão: aos olhos de um quarto dos entrevistados, a imprensa não é tão apartidária quanto deveria ser.


Evidências clamorosas


Comecemos pelo lado bom dos resultados. Metade do público afirma que quem mais apura os casos de corrupção no país são os jornalistas. Isso significa que, do ponto de vista dos entrevistados, se outras instituições falham, pelo menos a imprensa dá o alarme e vai atrás. Para 88%, a maioria das ‘denúncias’ feitas nas reportagens acaba se provando verdadeira. Coerentemente, nada menos que 97% são a favor de que a imprensa investigue e divulgue casos e suspeitas de corrupção e 92% são contrários a qualquer censura.


Agora o lado preocupante. Quando perguntados se os órgãos jornalísticos são equilibrados nas ‘denúncias’ que fazem, apenas 69% consideram que sim. Para 24%, o jornalismo pátrio é tendencioso (outros 7% não opinaram). Temos aí uma luz amarela. Numa pesquisa como essa, em que os índices de aprovação ficam na casa dos 90%, um contingente de 24% de desconfiados não é nada irrisório.


Antes de prosseguirmos, faço um esclarecimento. O leitor há de ter notado que venho usando a palavra denúncia sempre entre aspas. Explico-me. O termo ‘denúncia’, que a pesquisa adotou sem maiores reservas, é impreciso e pode apequenar o papel da imprensa. Denúncia quer dizer acusação. Se o jornalismo for visto como tribuna acusatória, será péssimo para os jornais, para os leitores e para a democracia.


Não é tão difícil de entender por quê. Na Justiça, quem faz denúncia é o Ministério Público. Os advogados cuidam da defesa. Assim, quando acolhe uma denúncia, o Judiciário acolhe também uma defesa. O julgamento só virá depois que os dois lados se manifestarem. Por analogia, se a imprensa se ocupasse apenas de ‘denúncias’, teríamos de inventar uma segunda imprensa para fazer as vezes dos advogados de defesa e ainda uma terceira, à qual caberia julgar. Portanto, não há muito sentido em supor que o jornalismo deva sair denunciando gente por aí. Não é para isso que ele serve.


A imprensa não tem – nem poderia ter – a função de acusar quem quer que seja. Ela não é o Ministério Público. O que ela pode pretender de melhor é apurar livremente os fatos. Ela investiga irregularidades na conduta das autoridades, por certo – mas não acusa, não defende nem julga. Se informar devidamente, terá cumprido o seu papel com dignidade: terá oferecido ao cidadão os elementos necessários para que ele forme sua própria opinião.


É verdade que, por vezes, as evidências de corrupção são tão clamorosas que a mera publicação de uma reportagem, por mais sóbria que seja, assume ares de denúncia contundente. Tudo bem, isso acontece, mas, aí, quem acusa são os fatos, não o jornalista. Repórteres não existem para fazer ‘denúncias’. A finalidade do seu trabalho é fazer reportagem.


Quanto mais, melhor


Voltemos, então, aos 24% que entendem que o nosso jornalismo é parcial. É bem verdade que, na sua rotina, a imprensa deve mesmo ser mais dura com o governo do que com aqueles que não exercem funções públicas, mas isso não significa que ela deva ser feroz contra o governo e dócil com a oposição. Se uma parte do público sente que ela peca por esse tipo de desequilíbrio, algo vai mal. Se 24% dos entrevistados afirmam que os jornais resvalam no partidarismo, algo realmente vai mal.


Quanto a isso não há margem para dúvidas. O modo como a pergunta foi feita aos entrevistados foi explícito, direto. Antes de formular a questão, o pesquisador citava ‘o mensalão do PT, a corrupção de Sarney e do Senado, os gastos secretos de cartões de crédito da Presidência, o mensalão do DEM no DF, e o mensalão de Minas, que envolveu um senador do PSDB’. Só depois, indagava: ‘Você acha que a imprensa só faz denúncias contra um lado ou denuncia todo mundo, como o PT, o PSDB, o DEM, o PMDB, etc.?’ Foi a esse estímulo que os entrevistados reagiram. Foi a partir disso que um quarto deles se manifestou insatisfeito com o partidarismo das notícias que recebe.


Enfim, a pesquisa do Instituto Análise trouxe boas novas para os jornalistas, dando conta de que o público aprecia e valoriza os jornais. Mas trouxe também este recado muito claro: o princípio do apartidarismo talvez venha sendo negligenciado. Os responsáveis pela condução dos veículos jornalísticos deveriam olhar para esse recado com mais rigor.


Vivemos um momento delicado, em que muitos procuram desqualificar a instituição da imprensa como se ela não passasse de um aparelho sob controle da oposição. Os editores, se estiverem conscientes, não darão pretextos e muito menos argumentos aos profetas da polarização.


Imprensa informa: não faz denúncia nem faz campanha. Quanto mais os cidadãos estiverem convencidos disso, melhor.

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Jornalista e professor da ECA-USP