Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa no pelourinho

Em tempos de comunicação instantânea e ilimitada, nada mais natural que todo mundo se sinta estimulado a opinar sobre tudo, mesmo sobre o que nada entende, o que por sinal é o que mais acontece. Daí, por exemplo, a quantidade cada vez maior de gente posando de expert em imprensa e jornalismo. É uma festa como diplomados, medalhões ou simples palpiteiros de outras áreas ditam cátedra, se arvoram a ensinar como se escreve e se edita, como se os jornais e revistas fossem feitos por néscios ou amadores. Também, pudera: depois do virtual rebaixamento da categoria decretado pelo Supremo Tribunal Federal, com a supressão da Lei de Imprensa e o fim da exigência do diploma para o exercício da profissão, o que não falta são leigos para ensinar o vigário a rezar missa. A começar pelo presidente Lula.

Isso que, como se sabe de cor e salteado, a falta de formação específica nunca chegou a ser um impedimento para o ingresso e o uso regular da imprensa por quem quer que seja, o que por si só já seria um bom motivo para que a profissão fosse preservada, pelo menos no aspecto jurídico, já que na prática ter canudo ou não nunca passou de mera formalidade. Afinal, se é como decretou o editor-chefe do Jornal Nacional, William Bonner, que disse não precisar mais do que seis meses para formar um profissional à altura da Globo, na concorrida palestra que fez recentemente a alunos de uma faculdade de jornalismo em Brasília, desdenhando a capacitação formal, bastaria passar pelo tal treinamento intensivo e estamos conversados. Qualé, Bonner? Qualé?

Jornalista de cepa

De qualquer modo, Bonner deve saber o que diz, com a experiência de quase duas décadas a frente do noticiário de maior audiência e influência no país, se bem que foi no depoimento que deu pouco depois a Marília Gabriela, em seu programa de entrevistas no GNT, que esse desapreço pela capacitação formal, compartilhado por muita gente no setor, se mostra contraditório e ambíguo, para dizer o mínimo.

Perguntado sobre qual considera o grande desafio do trabalho de chefiar e editar o eterno campeão de audiência da casa, Bonner disse que a maior dificuldade – e fruto de constante insatisfação e questionamento – é filtrar o noticiário conforme o grau de importância dos eventos. Ou seja, intuir, garimpar no manancial de informações que pipocam na redação aquilo que é mais relevante, de interesse público – e, é claro, que venha a repercutir, como convém a um jornalismo que se preze.

Pois ao confessar a dificuldade permanente em lidar com a mais elementar função da prática jornalística – a tarefa de dissecar e ordenar os fatos sob o ponto de vista do interesse público –, Bonner inadvertidamente não deixa de admitir que o aprendizado da profissão é bem mais complexo do que falou, requer bem mais preparo do que, retoricamente, talvez para impressionar a platéia de neófitos, bravateou em Brasília. E de fato, não são poucas as queixas e reclamações sobre as pautas e o enfoque que o engessado noticiário do Jornal Nacional costuma apresentar, às voltas com o esforço ainda mais inglório de informar sem provocar melindres e contrariar a imagem de neutralidade que a Globo, pelo menos em relação a seu carro-chefe, vê-se na obrigação de aparentar.

De um modo geral, a afluência cada vez maior de colaboradores de todos os calados e matizes na imprensa não chega a ser um transtorno, muito menos um desprestígio para o jornalista-padrão, aquele que efetivamente faz o trabalho pesado. Muito pelo contrário, opiniões especializadas de outras áreas são sempre bem-vindas, ainda que raramente isentas e imparciais, como seria o ideal. De mais a mais, há que se separar o jornalismo convencional do analítico, do profissional que exerce o ofício em sua plenitude do franco-atirador que eventualmente aparece para tecer considerações de cunho pessoal, em suma, que não representa a posição da casa. Muita gente boa ainda faz confusão sobre isso, a dano do jornalista de cepa, aquele que arregaça as mangas e sai à cata da notícia, ao contrário do jornalismo almofadinha que fica com a fama, dos figurões que se penduram ao laptop cozinhando e, não raro, cafetinando o trabalho alheio.

Claque vibrante

Muito do mau juízo que se faz da imprensa deve-se a essa casta de áulicos que se dedicam a especular sobre os dejetos da política como forma de chamar a atenção e se manter na crista da onda. São jornalistas que não fazem o jornalismo castiço, e sim um tipo de colunismo que, salvo uma ou outra exceção, se equilibra entre o esgoto que denunciam e a lama das segundas intenções. Do alto de sua relativa independência, já que ninguém vive de brisa, acabam não sendo levados a sério exatamente pela radicalização, ostensiva, por verem só um lado da moeda – o que é uma pena na medida em que muito do que criticam e abominam não só procede como deveria repercutir bem mais junto a opinião pública.

Tais distorções, por assim dizer, acabam sendo um prato cheio para os patrulheiros de plantão, aquela turma a que me referi de início, que não perde a chance de malhar a imprensa mesmo por motivos banais, por birra ou simplesmente para aparecer. Leigos que nunca entraram numa Redação, que desconhecem as técnicas, o domínio que é preciso ter dos mais variados recursos e temas, de tudo que envolve a elaboração e edição do material que chega ao público, sem falar na busca da informação em si. E ninguém melhor que este Observatório da Imprensa para volatizar idiossincrasias que no mais das vezes não passam de panfletos permeados de mal-disfarçadas motivações político-partidárias, e por isso mesmo tão pouco proveitosas quanto os ensinamentos que pretendem impingir.

Tolices como implicar com o teor de obituários, como se a quantidade de linhas devesse corresponder à importância do morto; esquadrinhar capas e capas de publicações por simples preciosismo e pedantismo; comparar nomes e épocas passadas para provar teses jornalísticas capciosas; contestar o destaque dado pelo Jornal Nacional à criminosa destruição de dez mil pés de laranja por vândalos do MST, por conta da marota conjectura de que a filmagem poderia ter sido adulterada; e por aí afora. Disparates, antolhos que, afora a consternação pelo ranço de preconceito e discriminação que emanam, só fazem sentido para a claque que vibra quando Lula diz que o papel da imprensa e do jornalismo é apenas de informar, e não fiscalizar.

Ora, se a imprensa não pode fiscalizar, se o TCU também não pode, qualé, meu ? Qualé?

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Jornalista, Santos, SP