“Chomsky é incansável. É um rebelde sem pausa”
Bono Vox, U2
“É um problematizador de ideias”
Desirée Motta-Roth, tradutora e pesquisadora da UFSM
“A responsabilidade dos intelectuais é falar a verdade e expor as mentiras”
Noam Chomsky
A frase provocadora do título é do linguista e ativista americano Noam Chomsky. Proferida em 1996, indica o quanto as ideias que hoje apresenta aos 92 anos se constituem em uma espécie de previsão antecipada de fatos recentes do cotidiano global. Não só pelo que escreveu em seus mais de 70 livros, além de artigos e entrevistas, quanto pelas impactantes expressões e metáforas. Tanto que, em sua obra mais recente publicada no Brasil em julho deste ano, “Internacionalismo e extinção”, registra no prefácio que a pandemia do coronavírus é algo bastante sério, mas “estamos diante de três outras imensas ameaças: a crescente e intensa possibilidade de uma guerra nuclear, exacerbada pela ação de Trump, o aquecimento global e a deterioração da democracia”. Ou seja, se não perecermos pelos conflitos com armas de tecnologia sofisticada ou temperaturas cada vez mais elevadas, poderemos ser dizimados por extremistas que vem se empoderando em governos de vários continentes.
Fatos recentes auxiliam a ilustrar a preocupação de Chomsky oriunda de décadas atrás agora retomada. A crise civilizacional que enfrentamos na atualidade envolve não só posições de algumas lideranças mundiais ultraconservadoras, bem como uma imprensa, que na opinião do professor, pouco perturba a elite dominante, pois produz o chamado “consenso fabricado”. Ou seja, utiliza-se de técnicas de controle do público através dos meios de comunicação por onde “determina, molda, manipula e restringe”.
Embora não tenha informado – ao menos de maneira generalizada – inadequadamente a tragédia ocorrida em Beirute, na terça-feira 4/8, com a explosão em um armazém contendo 2.750 toneladas de nitrato de amônio, na capital libanesa, devastou bairros inteiros, deixando mais de 300.000 pessoas desabrigadas, provocou 171 mortes e 6.000 feridos, além de dezenas de desaparecidos. Nem ao noticiar o ocorrido no Brasil, onde superamos na segunda semana de agosto, o número de mortos pela Covid-19 daqueles cerca de 75 mil japoneses mortos – em 9 de agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram uma segunda bomba atômica sobre Nagasaki, no sul do Japão –, onde, na ocasião, 20 mil tornaram-se vítimas segundos após a explosão. Mas, em uma atitude minimamente de desonestidade intelectual, pode-se pinçar como exemplo, o Jornal Nacional, da TV Globo, ao divulgar na segunda-feira, 10/8, um suposto “estudo” do Instituto Millenium – think-tank do neoliberalismo que tem entre seus fundadores os ex-presidentes do Banco Central Armínio Fraga e Gustavo Franco, além do próprio ministro da Economia, Paulo Guedes e é financiado, por empresas como a Gerdau, Porto Seguro e Bank of América –, com o intuito de “convencer” a população a acreditar que, no Brasil, gasta-se demais com os salários dos servidores públicos. Assim, investimentos em outras áreas prioritárias ficariam prejudicados. A finalidade explícita: a de “emplacar” desde já a chamada “reforma administrativa” preparada pelo governo para diminuir (ou restringir) a participação do Estado na realidade brasileira.
São acontecimentos que associados a outros como pano de fundo podem deixar ou não muitos brasileiros com “cicatrizes no cérebro”, como o próprio Chomsky anunciou ao completar a conhecida sentença que titula este texto. Como por exemplo, o que destaca a jornalista Thaís Oyama em sua coluna no Portal Uol, em 13/8, ancorada em argumentos sobre a inexistência de qualquer resquício de fundamento científico nas recentes afirmações do presidente, pela pergunta: Bolsonaro é apenas irresponsável ou maluco também? A jornalista ilustra sua indagação com fatos. O de que o presidente já acreditou que o nióbio fosse salvar o Brasil e que uma tecnologia americana iria “resolver o problema de luz de Roraima” fazendo a transmissão de energia elétrica sem usar nenhum meio físico. Bem como sobre os 100 mil brasileiros que morreram por causa do coronavírus, e, que segundo Bolsonaro “caso tivessem sido tratadas [com a hidroxicloroquina] lá atrás” essas vidas poderiam ter sido preservadas. Oyama pondera que uma das características de um líder populista é sempre dispor de uma solução simples – e equivocada – para um problema complexo.
Justamente é o que aflige aos mais atentos observadores, a partir da percepção do pensamento do ex-professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), agora docente do Departamento de Linguística da Universidade do Arizona: a “fabricação do consenso” tem a intenção clara de enganar, induzir ao erro e controlar. Segundo Chomsky, é o fator responsável pela redução das pessoas a apatia. “80% dos indivíduos apenas cumprem ordens, não prestam atenção em nada”, destaca.
Quem confia nos fatos?
Chomsky costuma apontar em artigos e entrevistas, a concentração aguda de riqueza em mãos privadas – inclusive dos proprietários dos meios de comunicação – acompanhada de perda do poder da população geral em que as pessoas se sentem menos representadas e levam uma vida com trabalhos precários, como ingredientes que resultam em uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo que se espalha pelas camadas populacionais. Com a crescente difusão das chamadas fake news, o filósofo identifica a popularidade alcançada por elas entre contingentes diversos, inclusive que perpassam faixas etárias. Ao se mesclarem ao exercício dos poderes vigentes – legislativo, judiciário e executivo – impulsionadas por amadores e até alguns profissionais, acabam por facilitar a percepção de que um contingente significativo da sociedade é vitimado pelas políticas prevalecentes. O que faz com que desconfiem do que vem das fontes oficiais e veículos de comunicação tradicionais. E por vezes se sujeitem ao que possam interpretar de maneira mais fácil como favorável aos seus interesses e atitudes. Portanto, alerta Chomsky, as mídias sociais podem e são usadas tanto “para o bem” quanto “para o mal”. O que não é difícil constatar: muitos já não confiam nem nos próprios fatos. Para Chomsky, há quem chame isso de populismo, mas na verdade é descrédito das instituições. E pergunta: “Se ninguém faz nada por mim, por que tenho de acreditar em alguém?”
Câmaras de eco
Ao tratar da possibilidade de manipulação recorrente pela mídia, Chomsky reconhece que existem tendências conflitantes. Lembra das principais fontes de notícias quando veiculadas pelos grandes canais de TV e jornais matinais, e a forma como a população era exposta a um espectro de informações, atitudes e percepções largamente compartilhado. Hoje, destaca, um dos efeitos do acesso à internet é levar pessoas a “câmaras de eco”, onde a exposição é intensa de informações que reforçam seus próprios pontos de vista. Pelas redes, reitera o filósofo, a oferta de possibilidades para acessar fontes de informação se amplia, o que de alguma maneira é positivo para aqueles que desejam aprender algo.
Por outro lado, quando se pensa na abordagem sobre a representação como realidade, Chomsky é enfático: com a mídia sob controle absoluto, não é difícil vender uma versão ou até falsificar completamente a história. Cita como exemplo a atitude dos americanos diante da cobertura do Golfo e uma pesquisa realizada pela Universidade de Massachusetts naquela ocasião. Uma das perguntas se destacava: “Entre mortos e feridos, quantas vítimas você calcula que a Guerra do Vietnã causou? A resposta média foi de cerca de cem mil quando na verdade os dados oficiais apontavam para cerca de 2 milhões. Para o linguista, o número real varia entre 3 e 4 milhões. Ele acrescenta de maneira a ilustrar: “Se aplica a qualquer situação, ou assunto como América Central, do Sul, ou Oriente Médio”. Ou seja, a imagem do mundo que é apresentada à população, segundo o linguista, é apenas uma pálida relação com a realidade, onde a verdade dos fatos “encontra-se enterrada debaixo de montanhas e montanhas de mentiras”.
Os cinco filtros
Em “A Manipulação do Público”, obra conjunta com Edward S. Herman (professor de finanças e analista dos meios), publicada no Brasil em 2003, destaca-se um modelo da propaganda da mídia com estudos de caso detalhados para demonstrar seu funcionamento. O que segundo alguns estudiosos, é uma teoria que explica a existência de um viés sistêmico dos meios de comunicação em termos de causas econômicas e estruturais. Não como fruto de uma eventual conspiração criada por algumas pessoas ou grupos de pessoas contra a sociedade. E que pode ser estendido a qualquer nação que partilhe o sistema econômico dos EUA.
Os autores afirmam que do viés deriva a existência de cinco filtros em que as notícias precisam ultrapassar antes de serem publicadas. Combinados, distorcem sistematicamente a cobertura dos fatos pelos meios de comunicação.
O primeiro filtro é o da propriedade dos meios de comunicação. A maioria dos principais meios de comunicação pertencem às grandes empresas (as denominadas “corporations” interessadas em vender produtos); Já o financiamento apontado por Chomsky e Herman como segundo filtro, está ligado ao fato da mídia obter a maior parte de sua receita não de leitores, mas da publicidade (envolvendo governos e empresas). Com isso, o modelo previsto por eles demonstra que grande parte das publicações reproduzem notícias que refletem os desejos, as expectativas e os valores dessas organizações tendo um suposto fim social a encobri-los; O terceiro filtro se relaciona à dependência dos veículos de comunicação das instituições governamentais como fonte de informações para a maior parte das iniciativas perante a sociedade; A crítica realizada por grupos de pressão junto às empresas de comunicação quando se distanciam da linha editorial prevista para os projetos associados (ou seja, mais identificada com os interesses próprios e de parceiros do que com os da sociedade) é um outro filtro identificado; E, por fim, as normas que referem-se de maneira muitas vezes a cercear conceitos e práticas previstos para o exercício do jornalismo, bem como alarmismo que evoquem medo ou o “comunismo”.
O jornalista “marciano”
Da criação metafórica de um “jornalista marciano” que estudou em Harvard e na Faculdade de Jornalismo de Columbia e tem o compromisso com os princípios morais e nobres gerais aceitos e que acredita neles para desenvolver uma pauta sobre a “guerra contra o terrorismo” à inspirador de grupos de rock e pop, Chomsky carrega inúmeras histórias consigo e em torno de si que contrabalançam sua postura crítica permanente em relação aos meios de comunicação, aos Estados autoritários, ao governo americano, e a outras iniciativas que agridam realidades democráticas. Por exemplo: ele é capaz de fazer com que a banda Rage Against the Machine leve cópias de seus livros em suas turnês. O grupo Pearl Jam já tocou pedaços de falas de Chomsky mixadas com algumas de suas músicas. O R.E.M., inclusive, convidou-o a palestrar antes de seus shows, mas Chomsky recusou. E o cantor e ativista político Bono Vox, do grupo irlandês U2, disse certa vez que “se o trabalho de um rebelde é derrubar o velho e preparar o novo, então este é Noam Chomsky, um rebelde sem pausas, o Elvis da Academia… como o rock n’roll dos anos 1990 continua sendo atado nas mãos, é irônico que um homem de 65 anos de idade tenha o real espírito rebelde”. Para a revista Rolling Stone, Chomsky “está no nível de Thoreau e Emerson no campo da literatura da rebelião”.
Outro exemplo é o documentário envolvendo quatro países e com mais de 500 horas de filmagens. Produzido em 1996, resultou em um ensaio sobre a mídia, formas de dominação e lacunas da globalização, ciência política e filosofia. Noam Chomsky And The Media: Manufacturing Consent (“Consenso fabricado – Chomsky e a mídia”), dirigido por Mark Achbar e Peter Wintonick, lança um olhar crítico sobre o controle do pensamento em uma sociedade democrática. Momentos que Chomsky entende como necessários como pano de fundo de mobilização pois, de acordo com o ativista, “as questões existenciais não podem ser tratadas de maneira eficaz a menos que haja conscientização e compreensão geral acerca de sua urgência”.
Dá para impedir as ameaças
“Os mesmos que arrancaram os olhos das pessoas são aqueles que reclamam da cegueira. Democracia requer livre acesso à informação e ideias” é um entre tantos insights do criativo frasista Chomsky. A referência é associada a uma crítica ácida ao jornal americano New York Times. Ao empregar mais uma entre as tantas metáforas presentes em suas obras, aponta-o como “um bajulador do imperador”. Também se liga à ideia de uma crítica séria dos “abusos específicos” cometidos pela mídia americana, aquela que chama de “imprensa não-livre”, como apregoava o educador John Dewey, um dos mentores na formação de seu pensamento. Chomsky, assim como Dewey, acredita que para uma compreensão dos fenômenos midiáticos na atualidade é preciso buscar suas origens: “o efeito necessário do atual sistema econômico sobre todo o sistema de comunicação; sobre a avaliação do que é notícia, sobre a seleção e eliminação dos assuntos que são divulgados, sobre o tratamento dado às notícias tanto nas colunas editoriais quanto nas do noticiário”. Se quisermos entender os órgãos de imprensa, alerta o linguista, devemos começar por perguntar o que são.
E com isso entendermos que uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de subordinação ao poder e à autoridade. Manda a ortodoxia às favas, questiona o que “as pessoas bem pensantes aceitam sem questionar”, rasga o véu da censura tácita, disponibiliza ao público a informação e um leque de opiniões e ideias que são o pré-requisito para uma participação significativa na vida social e política, e além disso, oferece aos cidadãos uma plataforma para o debate e a discussão das questões que lhes dizem respeito. “Serve, assim, de base para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática”, sentencia.
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Referências consultadas
AHRENS, Jan Martínez. Noam Chomsky: “As pessoas já não acreditam nos fatos”. Cultura: Portal El País, 12/3/2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/06/cultura/1520352987_936609.html
ASCHER, Nelson. VERDADES E MENTIRAS – A privatização da democracia. Portal do jornal Folha de S. Paulo: 9/3/1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs090312.htm
AOS FATOS. ESPECIAL – Todas as declarações de Bolsonaro, checadas. 2/8/2020. Disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/
CHARLES, Frédéric. “Não quero que ninguém sinta o que eu senti”: Nagasaki lembra os 75 anos da bomba atômica. RFI/Portal UOL: 9/8/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/08/09/nao-quero-que-ninguem-sinta-o-que-eu-senti-nagasaki-lembra-os-75-anos-da-bomba-atomica.htm
CHOMSKY, Noam. Mídia, propaganda política e manipulação. SP: Martins Fontes, 2013.
______________. Propaganda e consciência popular. SP: EDUSC, 2003.
______________; FOUCAULT, Michel. Natureza humana, justiça vs. Poder: o debate entre Chomsky e Foucault. SP: Martins Fontes, 2014.
______________. A independência do jornalismo. Portal Esquerda. 27/11/2017. Disponível em: https://www.esquerda.net/artigo/independencia-do-jornalismo-por-noam-chomsky/52141
OYAMA, Thaís. Bolsonaro é apenas irresponsável ou maluco também. Portal UOL, 13/8/2020. Disponível em: https://bit.ly/31WfaMV
PEIRANO, Marta. Noam Chomsky: “Se não conseguirmos um ‘Green New Deal’, ocorrerá uma desgraça”. Portal do jornal El País: 17/5/2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-05-17/noam-chomsky-se-nao-conseguirmos-um-green-new-deal-ocorrera-uma-desgraca.html
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Boanerges Lopes é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de livros, doutor e mestre em Comunicação pela UFRJ e Umesp.