Um artigo de Gianni Carta na revista CartaCapital [‘Sarkozy à soviética‘] levanta um tópico importante, ainda não suficientemente discutido: a parcialidade da imprensa brasileira frente a Hugo Chávez. O presidente venezuelano é sistematicamente atacado, senão ridicularizado, por atos e atitudes que, cometidos por governantes como George Bush ou Tony Blair, passam como toleráveis.
Há, porém, algo de jornalisticamente intolerável nesse fenômeno, quando se considera que a mídia é hoje responsável por inteiro pelo agendamento do debate público. Isto não implica referendar a tese apocalíptica do controle das consciências por um ‘Grande Irmão’ orwelliano. Implica, sim, deixar claro que um agendamento parcial e conservador é um desserviço continuado à formação de um espírito público orientado por uma determinação equilibrada de valores.
De início, fica aqui excluída qualquer hipótese de aplauso irrestrito a Chávez, à maneira de seus partidários. O que se tem de levar forçosamente em conta são os efeitos da inconfessa retórica midiática sobre a explícita retórica verbal do governante venezuelano. No próprio texto corrente da imprensa, seja em colunas ou no noticiário corriqueiro, aparecem pequenos sinais de contradição entre a realidade de certos fatos e o discurso generalista orientado pelos editores. Basta prestar atenção a informações com pouco destaque no dia-a-dia dos jornais.
Retórica ultraconservadora
Por exemplo, a propósito de uma discussão sobre a América Latina no Fórum Econômico Mundial em Davos, o colunista Merval Pereira faz saber que…
‘…o presidente internacional da Pepsi-Cola, Michael D. White, foi o investidor que se mostrou mais entusiasmado com as perspectivas da região, que gera 40% do lucro de sua empresa no mundo. Ele garante que não mudou uma única vírgula de seu projeto de investimento na Venezuela por causa de Hugo Chávez.’ (O Globo, 25/1/2007)
Visão distinta teria sua concorrente mais direta, a Coca-Cola que, aparentemente, receia a escalada antiamericana de Chávez.
O interesse deste exemplo está no fato de que as posições favoráveis e desfavoráveis sobre o tópico em questão ancoram-se apenas no nível de avaliação da retórica chavista. O que Michael D. White está dizendo é que a fala do presidente venezuelano é por demais abstrata frente à realidade dos negócios de sua empresa. Ou seja, a retórica antiamericana de um presidente da República não impede ninguém de consumir um produto como o refrigerante implicado.
Toda retórica, bem o sabem os teóricos do discurso, é capaz de representar o real em imagens invertidas ou contrárias ao habitual. A publicidade faz isso o tempo todo, com vistas a criar cenários de sedução ou aliciamento de consumidores. Mas há uma distância entre a representação por demais abstrata e aquela outra que acompanha atos de intervenção direta no real-histórico. Assim, a retórica ultraconservadora de Bush se faz acompanhar de atos concretos, cujas conseqüências se vêem na morte de seus milhares de compatriotas no Iraque, nas violações aos direitos humanos na prisão de Guantánamo, na recusa de proteção à ecologia planetária e outras.
Imperativo político
Chávez é semioticamente rebaixado por bravatas verbais e atitudes estatais. Na prática, ele é capaz de não renovar a licença de uma rede de televisão, ou então expropriar um aeroporto privado em Caracas – acontecimentos tratados como bombásticos pela imprensa (O Globo, 26/1/2007), mesmo quando o texto omite maiores informações sobre a citada rede televisiva e termina esclarecendo que a expropriação do aeroporto visava a diminuir o trânsito próximo ao aeroporto internacional da capital venezuelana. Até mesmo a leitura pública de uma carta de Fidel Castro sobre o seu estado de saúde por parte do presidente venezuelano é conotada como uma aberração.
Na verdade, a imprensa vem informando o seu público mais sobre a imagem de Chávez do que sobre a realidade do relacionamento político entre o governante e seu povo – ou entre ele e os outros governos da América Latina. É uma imagem problemática, sem dúvida, diante das exigências oblíquas de ajustamento das aparências políticas à lógica do neoliberalismo galopante. É uma imagem estatista, emocional, retrô, demodée. Ele a reforça com uma retórica desse calibre, embora nem melhor nem pior do que os discursos de Bush, Blair e quejandos. Demonizá-lo, porém, é incorrer jornalisticamente na retórica enviesada da desinformação.
No começo de sua pequena biografia de Freud, Stefan Zweig diz que ‘a medida mais certa de uma força é a resistência que ela é capaz de sobrepujar’. Para melhor informar sobre a realidade venezuelana – e é hoje um imperativo político estarmos a par do verdadeiro potencial político-econômico da ‘região’ latino-americana – a imprensa séria deve obrigar-se a balancear no noticiário o jogo da força e da resistência.
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Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro