Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A informação e a filtragem, tempos assimétricos (III – final)

Em prosseguimento ao tema sobre a relação entre tecnologia e educação – que, no presente artigo, se apresenta em terceira edição –, cabe refletir em bases históricas. É sabido que a civilização só foi possível ser construída em função do conhecimento. A partir daí, dois aspectos indispensáveis: a sistematização e a transmissão. Não tivesse havido a paridade mencionada, a civilização sucumbiria ante a força incontrolada da barbárie.

De volta, pois, às origens históricas, sabe-se de um tempo em que, ao ar livre, jovens seguiam pelos jardins enquanto ouviam a palavra do mestre. Obviamente, refiro-me à pedagogia peripatética que, como registro, nos deixaram os escritos de Aristóteles. É claro que mesmo o mais ingênuo dos saudosistas não sonhará com o retorno daquele tempo, não bastasse o fato de que, no período aludido, o conhecimento estava radicalmente circunscrito a pares aristocráticos, demonstrando quanto o sentido de ‘democracia’, para os gregos, continha de restrição elitista.

Com breve salto no tempo, outro cenário se apresenta no qual a experiência com o conhecimento recebe um fator condicionante de caráter espacial. Com inspiração na escolástica aristotélica, na Idade Média, o saber sai dos jardins para a clausura dos mosteiros, ou seja, promove-se o ‘emparedamento’ do saber. A necessidade de sistematização do conhecimento faz, no século 11, surgir o primeiro centro de formação e transmissão sistematizada do saber: a Universidade de Bolonha, fundada em 1088. Dela viriam a participar, como estudantes, Dante e Petrarca. Em seguida, a Universidade de Praga e outras tantas lotearam a Europa.

A grife ‘educação a distância’

Eis que a própria gênese do capitalismo, poucos séculos após, exigiria a inclusão maior de segmentos populacionais para a necessária expansão tanto do conhecimento quanto de profissionais especializados que pudessem atender demandas. Por mais diferenças metodológicas que se tenham testado, algo, porém, sempre foi preservado: a transmissão ‘física’ do saber, associada a ‘arquiteturas’, na forma de escolas e universidades.

O modelo, perpetuado por séculos, levou a civilização a patamares de requinte e sofisticação. Sala, quadro, giz e saber foram suficientes para que a condição humana pudesse sondar o espaço sideral. Nesta hora, na estação orbital, um profissional altamente qualificado aperta um parafuso (protótipo do ‘peão do futuro’). Solto no espaço, com ferramentas, monta e conserta eventuais partes novas ou danificadas. É claro que a tecnologia de ponta o assegura lá, bem como, graças a ela, lá ele pôde chegar. Todavia, o longo percurso de seu preparo intelectual ainda se deu no modelo tradicionalizado, ao menos até a conclusão do curso universitário.

Em nome de suspeita estratégia, sob a rubrica da ‘democratização do ensino’, hoje há forte empenho em, de modo célere, substituir-se a experiência ‘física’ com o conhecimento, por ‘ferramentas tecnológicas’. Nesse particular, o Brasil, sempre ávido por incorporar ‘novidades’, parece fortemente inclinado a abrigar um modelo educacional virtualizado, além de encurtado no tempo. A grife ‘educação a distância’ seduz empresários do ramo e governos, tendo em vista economia de gastos e aceleração de ‘formações’ (ou ‘deformações’).

Carências insanáveis

Na condição de educador, há décadas, e ciente da solidez emanada da cultura letrada, como tal, colhida em mestres presenciais e livros, é que uso a expressão com acento grave: ‘educação à distância’ (quer dizer: educação à base de tecnologia eletrônica é uma ‘educação distante’, longe do que requer o enraizamento do saber). Formaremos ‘videotas’ com verniz de conhecimento. Aqueles que se encontram em postos de decisão pensam em números e estatísticas. Não se interessam por outros vetores nem fatores. Ignoram que um dos mais efetivos componentes na transmissão do conhecimento diz respeito às subjetividades que estão na cena. Vale dizer: é o afeto que cria elos – e não telas com profissionais distantes a enviarem por ondas o conhecimento. Este, quando muito, pode ser uma eventual experiência e não um processo pedagógico. Somente cérebros pequenos podem referendar o que chamam ‘escola do futuro’.

O que a mídia não reporta é como, em países desenvolvidos (e de vários deles, retornei há um mês) a questão é tratada. Nas reais ‘sedes do saber’, mantém-se a fórmula milenar, seja na sistematização, seja na transmissão. E mais: é justamente desses países que provém o ‘pacote tecnológico’ para ser comprado por ferozes senhores que, ávidos por multiplicarem seus lucros, lixam-se com a vitalidade da inteligência, sem a qual o país permanecerá habitado por carências insanáveis. Sim, apostem suas fichas no novo ‘cassino’ e, adiante, não chorem pela falência irreversível.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)