Defender a tese da notícia como construção da realidade e não como um espelho já rendeu algumas discussões acaloradas com colegas de profissão que não conseguem entender – ou se recusam a refletir sobre – esta história “de inventar a realidade”. De fato, ninguém inventou a violência em São Paulo, o seqüestro do repórter da Rede Globo, a máfia dos sanguessugas, os ataques no Líbano ou, mais recentemente, a compra de dossiês. São fatos, estão ocorrendo e, de certa maneira, têm afetado a vida de todos. Por que, então, insistir na tese de que a imprensa inventa, cria, constrói uma ou várias realidades a partir de suas narrativas?
Assim como não há uma verdade capaz de dar conta da totalidade de um fato ou de uma situação, não há também possibilidade de uma pessoa, por mais bem intencionada que seja, dar conta de descrever o que vê de forma inocente. As narrativas são sempre híbridas no sentido de que se constituem em uma teia de outras narrativas que tomam forma no discurso de quem as produz. O discurso da imprensa chega à sociedade sob o manto da imparcialidade, da verdade e da objetividade. São discursos produzidos por seres que não olham de fora a realidade, como observadores privilegiados, mas, antes, se encontram inseridos nela com todas as subjetividades que os compõem.
Ao falar de objetividade, seria interessante levar em conta o contexto em que ela surgiu como um atributo do jornalismo e destacar que não se pretendeu, ao evidenciá-la naquele momento, negar a subjetividade. Nelson Traquina, pesquisador português, fala no seu livro Teorias do jornalismo (Editora Insular, 2005) que a objetividade surgiu no fim do século 19 como um antídoto para os males que o jornalismo sofria, como perda de credibilidade. Assim, a objetividade se constituiu como uma série de procedimentos capazes de assegurar o exercício do jornalismo com credibilidade.
Ritual estratégico
Essa compreensão é importante, pois a crença na verdade dos fatos como um dos pilares do jornalismo contemporâneo foi também “uma invenção”, num determinado momento histórico e em um contexto de mudanças e transformações. No início do século 19, com o desenvolvimento da imprensa, o jornalismo como informação ganhou espaço em detrimento do jornalismo opinativo ou literário, forma como era praticado. Foi no século 19, portanto, que surgiu o paradigma do jornalismo e a figura do jornalista como um profissional que reivindicava o monopólio de saber o que é notícia e de dominar a forma de produzi-la.
Nelson Traquina diz que o novo jornalismo passou a viver, então, o culto dos fatos, ancorado no pensamento positivista reinante na época. A notícia passou a ser produzida regida pelos fetiches da objetividade e da imparcialidade. A imagem do comunicador neutro e desinteressado surgiu como ideal para configurar a atividade que se mostrava ao mundo como o espelho da realidade. Por isso, diante de um fato, o jornalista teria que buscar mais de uma versão, ouvir o outro lado. Essa seria a garantia de que sua opinião não prevaleceria e seria dada oportunidade a que todas as partes envolvidas se manifestassem.
A objetividade, dessa forma, pode ser encarada como um ritual estratégico capaz de garantir que certos procedimentos serão utilizados na produção das notícias. O culto à objetividade foi a forma encontrada para situar o jornalismo dentro de um campo que merecesse o reconhecimento da ciência, que via o jornalista como um simples transmissor de informações carente de fundamentação que pudesse elevá-lo a um nível mais privilegiado. Essa forma de encarar a objetividade em oposição à subjetividade pode levar a crer que os fatos são descritos tal e qual ocorreram. Como explicar, então, o uso de qualificações como gangues, galeras, criminoso e menor em determinadas situações em que seria possível informar sem utilizar tais adjetivos?
Sujeitos ativos
O jornalista crê que sabe identificar o que é notícia e faz isso baseado nos ditos valores-notícia e na fórmula de ouvir os dois lados como modo de garantir a isenção necessária para o bom exercício da profissão. O jornalista, que supostamente detém um conhecimento que permite a ele identificar o que é notícia, produz narrativas sobre os fatos de modo a que elas pareçam isentas e objetivas. A escolha do lide pode ser considerada o calcanhar de Aquiles do mito da objetividade. Afinal, que critérios objetivos são utilizados para escolher o que é mais importante em um fato que é narrado?
O jornalista diante de duas versões de um mesmo fato ou diante de mais de uma possibilidade de abordagem pode optar por narrar as duas e se isentar de possíveis ataques à sua parcialidade. Ele de certa forma lava as mãos e usa o argumento de que foi objetivo e ouviu os dois lados da questão. Essa imparcialidade é impossível, pois ao apresentar determinados aspectos da realidade, sob a forma de notícias, o jornalismo constrói novas realidades e novos referentes. A noção de verdade, tão cara ao jornalismo, está ligada à idéia de uma realidade que está pronta em algum lugar e que pode ser apreendida utilizando-se os critérios da imparcialidade e da objetividade. Ocorre que, ao buscar informações na imprensa diária, o cidadão comum nem sempre se dá conta de que as informações que recebe foram lidas, recortadas e selecionadas. Na perspectiva da notícia como construção, é impossível separar a realidade de sua produção, uma vez que as notícias são peças que ajudam na construção dessa realidade.
Outro argumento em favor da tese da notícia como construção é a falta de neutralidade da linguagem, que não pode funcionar como transmissora direta de significados. No jogo de sombras que se faz na imprensa, a verdade surge por um ângulo específico que traz imbricada em sua narrativa uma série de outras verdades subjetivas do sujeito que narra. Acho no mínimo curioso acreditar e defender que um jornalista se despe de tudo que é e acredita para se lançar em uma observação neutra da realidade. Jornalistas não são observadores neutros ou passivos; eles são sujeitos ativos na construção da realidade.
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Jornalista e mestre em Educação