Não foi uma decisão emocional. O ato de expulsar o jornalista cascateiro do The New York Times não foi comandado pelo fígado, o órgão dos humores. A tão criticada insensatez do governo foi maturada no cérebro, matriz do pensamento, central dos sentidos.
Elaborada, medida, ponderada, resultou de uma avaliação estratégica. Coletiva, embora não unânime, a opção articulou-se ao longo da segunda-feira e cristalizou-se na terça, quando se evidenciou que a lamentável peça jornalística assinada por Larry Rohter, longe de prejudicar o presidente Lula e a imagem do governo, gerou uma formidável onda de solidariedade, a primeira desde a posse em janeiro de 2003.
Imperioso capitalizá-la integralmente, sobretudo porque, entre as manifestações de repúdio à leviandade do jornalista e à leniência do jornal, apareceram as versões de um complô ianque para desacreditar o país líder do continente. Mesmo que estapafúrdia (considerando as fragilidades da matéria publicada), essa versão precisava ser valorizada. Renderia dividendos tanto no plano interno como no externo.
Não bastava o castigo moral imposto ao repórter gringo pela imprensa, classe política e pela opinião pública, era preciso tirar partido do episódio e associá-lo ao grande satã Bush. A expulsão repetiria o estrondoso sucesso da patriótica punição imposta a dois americanos que rebelaram-se contra a identificação de estrangeiros nos portos e aeroportos no início do ano.
Os prejuízos decorrentes de um gesto autoritário capaz de macular os compromissos democráticos do PT seriam digeridos por todos os que sofrem os efeitos da crise econômica mundial e neutralizados pela onda de descrédito que envolve a imprensa no mundo inteiro.
Avaliação enganosa
A recusa do New York Times a reconhecer sua falha facilitou a decisão do governo: enquanto o jornalão penitenciou-se ruidosamente pelas fraudes de Jayson Blair, que não prejudicaram ninguém em particular, aqui, mesmo ofendido o presidente de um grande país amigo, recusou-se qualquer tipo de retratação. Essa duplicidade de critérios de um jornal tão criterioso só poderia ser atribuída a uma insidiosa conspiração para enfraquecer o país que se contrapõe ao imperialismo da Casa Branca.
Não importa que o New York Times faça oposição a Bush e, em geral, seja simpático ao governo Lula. O New York Times, mesmo liberal, é americano, isto basta. O mesmo raciocínio simplista foi expresso pela esquerda brasileira em 2000, quando não soube distinguir entre Bush e Al Gore.
Na tentativa de expulsar o jornalista Larry Rohter há uma ponta de xenofobia e/ou culto ao bode expiatório que não convém ignorar. Razão pela qual a arbitrariedade não foi assimilada pelo ministro da Justiça mas endossada pelo das Relações Exteriores.
A decisão de não contestar a concessão pelo STJ do salvo-conduto ao jornalista expulso e acatar a decisão final do Judiciário, ao contrário do que possa parecer, não indica arrependimento ou recuo. O governo considera que conseguiu o que queria: depois de emitir há meses sinais inequívocos de fragilidade com uma sucessão de vacilações e omissões em tantas esferas, afinal, mostrou-se capaz de um gesto enérgico contra as vilanias engendradas pelos estrangeiros culpados de todas as nossas mazelas. Saiu da defensiva e mostrou-se macho. Liberdade de imprensa é um valor abstrato, não mobiliza o povão. Isto ficou claro quando o presidente Lula minimizou a reação da imprensa mundial e atribuiu-a ao ‘corporativismo’.
Enganam-se os que vêm os desdobramentos do caso Rohter como fruto de um espasmo, reação instintiva, gesto impensado. Não foi. Mesmo com a retratação do jornalista, é isso que preocupa.